Mineiridade a granel: empórios promovem cultura de Minas e são vitrine para produtores locais

Armazéns atraem todo tipo de público e reforçam a gastronomia mineira por meio da valorização dos produtos típicos do Estado
Por Raíssa Pedrosa O Tempo
Cheirinho de defumado misturado com café moído na hora e queijo curado recém-tirado da embalagem. Quem tem o costume de visitar empórios, ou os famosos armazéns de secos e molhados, em Minas Gerais, sabe exatamente qual a lembrança olfativa desses locais. Muito mais que estabelecimentos que vendem de tudo um pouco, os empórios se firmam como agentes importantes na preservação da cultura e da gastronomia do Estado. É lá que nativos e turistas encontram produtos típicos cuidadosamente escolhidos, muitos deles provenientes de pequenos produtores e da agricultura familiar.
E há centenas de estabelecimentos com essas características em Minas. Só em Belo Horizonte, de acordo com a plataforma de pesquisas de mercado Econodata, existem ao menos 408 empresas registradas com o nome “empório” e outras 84 com o nome “armazém”. Mas esse número pode ser ainda maior, segundo a plataforma, já que são termos específicos de um estabelecimento comercial e não classificações de atividade econômica. Ou seja, podem existir estabelecimentos com característica de empório que não usam esse termo, por exemplo
“Eu brinco que os empórios são o produto da mineiridade que a gente consegue exportar para outros estados. Hoje é um mercado muito interessante. Se você parar para pensar, tem empórios de produtos mineiros em São Paulo, por exemplo”, comenta a analista do Sebrae Minas Simone Lopes.
A especialista pontua que o empório é um tipo de estabelecimento que tem poder de levar a mineiridade para o mercado tanto local quanto turístico. “Esse modelo de negócio tem uma característica muito interessante: ele atende as necessidades do varejo, de quem está ali naquele entorno, mas tem também um potencial muito grande ligado ao turismo gastronômico, que é algo muito forte em Minas Gerais. Em qualquer cidadezinha do interior você tem um empório que condensa ali os produtos daquela região”, analisa Simone. “E, sem dúvida nenhuma, é um modelo de negócio que dá oportunidade para muitos pequenos produtores. Isso é maravilhoso!”
O professor e coordenador do núcleo de varejo da ESPM, Ricardo Pastore, lembra que o modelo de empório (do latim, emporium) surgiu muito antes do Brasil Colônia e tinha como objetivo a venda e a troca de mercadorias. Ao longo dos anos, sob influência da Europa, o Brasil absorveu esse tipo de comércio, que ganhou característica própria. Em Minas, o modelo fez muito sucesso porque o Estado está muito ligado às tradições e por conseguir entregar produtos de qualidade direto das fazendas. Para ele, o empório “é quase um patrimônio histórico nacional que vale a pena ser preservado, desenvolvido”, defende.
Direto da roça de verdade!
Em Belo Horizonte, a palavra “roça” está presente no nome de vários empórios. É como uma forma de deixar claro o propósito do estabelecimento e dizer que ali tem produto para quem quer sentir o gostinho do interior mineiro.
É o caso do Empório Da Roça, localizado no Santa Amélia. Lojinha de bairro, cujo público principal é a vizinhança, o estabelecimento trabalha com cerca de 180 produtos, incluindo ovo, café, queijo, geleia, doces, licores, bebidas, frutas da época, verduras, jiló, mel, biscoito e outros. O carro-chefe por lá é o ovo caipira. “É um produto que se encaixou muito bem, sabe? Tem uma rotatividade muito grande, todo mundo que compra gosta”, diz Douglas Marcus de Oliveira, 38 anos, proprietário da loja.
Ele explica que 95% dos produtos vendidos na loja vêm de pequenos produtores e não são encontrados nos supermercados. “Eu tenho que ter o diferencial. Eu não vou conseguir concorrer com o supermercado, porque eu não consigo comprar no volume, e também não é interessante para o meu cliente. Então, é um queijo da roça. É um café moído na hora. É um ovo caipira mesmo, que não é só vermelho. É uma goiabada ou um doce de leite que também não tem no supermercado”, exemplifica. Alguns produtos são, inclusive, da roça do sogro de Douglas.
A empresa surgiu em 2021, após Douglas e a cunhada, até então sua sócia, decidirem abrir um negócio para que pudessem ficar perto da família. E a proposta, desde o início, era trazer coisas do interior para a “cidade”. E uma das estratégias para conseguir comprar produtos diversos era fazer parceria com outros empórios, de outros bairros, para aproveitar o preço da caixa fechada e o frete. “Hoje, pela quantidade que a gente vende, eu consigo fazer os pedidos mínimos”, diz. Segundo Douglas, o faturamento da loja triplicou desde a inauguração.
Quem também tem “roça” no nome é o BH Coisas da Roça, localizado no centro da capital, que aposta na variedade para atender os clientes. Por lá são mais de 1.000 produtos, com destaque para os queijos, galinhas e frangos caipiras, linguiças caipiras e café moído na hora. “Meus principais clientes são os fidelizados que moram aqui no centro”, comenta Alysson Nascimento Vilas Boas, proprietário da loja.
A loja existe desde 2019 e sempre teve o propósito de oferecer produtos que podem realmente serem chamados de coisas da roça. Alyson diz que prioriza o pequeno produtor, inclusive aquele que tem dificuldades de informatizar e precisa de apoio. “Vou te dar o exemplo do mel. Eu trabalho com o Sr. Jair, de Santa Maria de Itabira, (a produção é feita por) ele, esposa e filho. Ele faz o processo todo do mel, colhe, traz e me entrega. Ele mesmo vem carregando a caixa de papelão, cada garrafinha de vidro embrulhada individualmente no jornal”, comenta.
“Os clientes já conhecem o mel dele, que é orgânico, é um mel 100%, puro. Eu não coloco concorrência para o mel do Seu Jair, porque isso confunde o cliente e atrapalha o negócio”, revela. Além do mel, Alyson recebe produtos de diversas outras cidades mineiras, como café em grão de Manhuaçu, banha da Raul Soares, ovos caipiras de São Sebastião do Oeste, linguiça de Carmópolis e de Sete Lagoas, pão de queijo de Contagem, doce de pequi do Norte de Minas, bananada e goiabada cascão de Ponte Nova, requeijão escuro de Coluna, pamonhas de Patos de Minas, carne de sol do Norte de Minas, açúcar e rapadura da Zona da Mata e vários outros.
Produtos para quem tem cultura de consumo e valoriza a história
Para além da oferta de bons produtos, os empórios atraem clientes que valorizam a cultura e a gastronomia local, acima de tudo. E quem vê esse perfil de cliente com muita frequência é o empório Roça Capital, que também carrega a roça no nome e está localizado no Mercado Central. “É o cliente que tem uma cultura de consumo, ou seja, não necessariamente significa que ele tem dinheiro, mas ele tem uma cultura de consumo daquele produto porque ele é culto gastronomicamente”, define Guilherme Pereira, 41 anos, sócio do estabelecimento.
“E o fato de estar dentro do Mercado Central é relevante, porque eu recebo todo tipo de pessoa. Quem visita o Mercado Central valoriza cultura e história. A pessoa deixa de comprar no supermercado porque está a fim daquele contato”, avalia. “Na minha loja em específico acontece às vezes de a gente trazer queijo de outros estados e, dependendo do estado, não conseguir vender”, exemplifica, reforçando a preferência do público pelos produtos locais.
O Roça Capital foi inaugurado em 2014 e, ao longo do tempo, foi se especializando em queijo curado. Guilherme conta que investiu no aprendizado sobre o queijo e chegou, inclusive, a fazer curso na França sobre o processo de maturação. Por lá, é possível encontrar até Queijo Minas Artesanal premiado. No entanto, para Guilherme, é o paladar do cliente que manda. “Queijo bom é queijo que vende”, resume.
Guilherme explica que o queijo muitas vezes recebe premiação por um processo específico na fabricação, às vezes algo que, para o consumidor comum, pode não fazer diferença no paladar. “Eu falo isso para todo produtor que chega falando que o queijo é premiado. Não adianta ser premium e não vender. Porque as avaliações de julgamento dos queijos são muito específicas”, explica. “A gente considera um queijo top o que ganha medalha super ouro, porque significa que ele foi premiado em todas as categorias”, diz.
Além disso, na escolha do produto, Guilherme também pontua a importância de ter preços atrativos e de acordo com o mercado. “O produto pode ser mais caro desde que ele tenha um diferencial de paladar que seja nítido, perceptível para o consumidor. Se o consumidor não consegue perceber isso, a gente não trabalha”, diz. Um exemplo desse cuidado com a receptividade do cliente é o café. “A gente servia o café que o cliente reclamava. Aí eu perguntei ao produtor se ele podia adequar a torrefação para mim, e a gente acabou desenvolvendo uma marca junto”, lembra. Hoje, o Roça Capital trabalha com cerca de 80 tipos de queijo e mais de 200 produtos, entre geleias, cafés, vinhos e outros.
Diferencial dos empórios está no carinho
“Atendimento é carinho, venda é consequência”. Esse é o mote de Ritha Jácome, proprietária e queijista do Empório du Carmo, localizado no Santo Agostinho. Para ela, o grande diferencial do empório é que se trata de um lugar que entrega, além de bons produtos, uma consultoria para o cliente. E isso é uma das coisas que ajudam a “vender” Minas Gerais: o cliente compra o produto, mas também conhece a sua história, sabe onde foi produzido e quem produziu.
“Muita gente pergunta assim: qual é o melhor queijo que você tem? Depende, porque aquele que foi premiado e que custa, sei lá, 300 reais o quilo, não vai, necessariamente, ser o melhor queijo para a pessoa”, exemplifica. “Quem vai te atender vai te escutar e vai saber o que você gosta”, diz. “Eu penso que o empório que se propõe realmente a representar Minas, porque é isso que a gente está fazendo, representando os produtores mineiros, tem que ter essa expertise de escutar, de entender, de ter paciência, de conversar”, diz.
E esse atendimento faz toda a diferença na hora de atender turistas, por exemplo. Segundo Ritha, pelo menos 30% de seus clientes são turistas que estão hospedados, principalmente, em um hotel próximo ao estabelecimento. Ela conta que o pessoal do hotel costuma indicar a loja para os hóspedes encontrem produtos típicos - com muita frequência, quem visita Minas leva para casa pelo menos um queijo mineiro.
Para a proprietária, o papel do empório é garimpar produtos. “Se o produto está aqui na loja, ele foi atestado por mim e eu conheço o produtor”, diz. “Eu vendo um embutido que é feito em Manhuaçu. Se eu o puser na prateleira ao lado do industrializado, ele fica mais opaco. Mas eu sei que aquele opaco é por causa do processo mais artesanal que não vai levar aditivo. Aí, eu tenho que explicar à pessoa que ela está levando um produto de qualidade”, comenta.
“É o serviço de selecionar o que tem de melhor dentro daquele contexto. E hoje isso está sendo muito valorizado pelo mercado consumidor”, reforça Simone Lopes, que acrescenta que Minas Gerais é reconhecida mundialmente por conta dos cafés especiais, e os empórios têm a possibilidade de entregar isso no varejo
O Empório Du Carmo nasceu oito anos atrás, com a proposta de resgatar o formato de negócio que o pai de Ritha tinha na década de 50: uma venda que tinha “um pouquinho de cada coisa” e era extremamente organizada. Ela e o irmão abriram o empório que hoje conta com três lojas e uma gama de mais de 2.000 itens de 700 produtores. Por lá, os setores são divididos em: quitandas (bolo, pão, biscoito, baguete italiana, rosca), cafés (de todas as regiões de café de minas), doces, vinhos (produções mineiras), congelados, queijos (de MG, SP, GO) e carnes (linguiça artesanal e embutidos).
Beatriz Farias comanda empório dedicado aos Vales do Jequitinhonha e do Mucuri | Foto: Fred Magno
Empório no Prado reforça cultura e gastronomia dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
Na ideia de valorização da cultura Mineira, o Empório dos Vales, localizado no Prado, é um dos estabelecimentos que eleva a “exportação” das tradições para outro patamar. Com produtos exclusivos dos vales do Jequitinhonha e do Mucuri, é um estabelecimento que vende o interior de Minas para a capital.
Por lá é possível encontrar desde geleias, queijos e bebidas até peças de barro produzidas no Jequitinhonha e artesanatos em madeira dos índios Pataxó. Um produto bem específico da região encontrado no empório é o tijolo: um doce feito de rapadura, mamão verde e gengibre. Tem também o biscoito espremido, feito por uma associação de mulheres de Malacacheta, cidade natal da proprietária da loja, Beatriz Farias.
Segundo a proprietária, muitos clientes procuram a loja como uma forma de se aproximar da cultura de sua terra natal. E ela recebe clientes de vários bairros vizinhos e até turistas de outros estados. “Tem gente que prova o doce e diz: ‘nossa, tem 30 anos que não como isso’, e isso é muito interessante”, revela.
Além disso, somente lá o cliente encontra carne serenada feita segundo tradição de família e torresmo frito fresquinho, pronto para comer igual pipoca, preparado carinhosamente pela própria Beatriz.
Ela conta que a história do empório começou ao lado de um grande amigo, o músico Tau. Ambos eram da região do Mucuri e Jequitinhonha e queriam trazer a tradição de suas terras para BH. “A gente tinha um sonho em comum: além da nossa música, queríamos mostrar a riqueza da gastronomia e da arte da nossa região”, diz.
A loja foi inaugurada pouco antes da pandemia, em março de 2020. “Nossa missão era trazer o pequeno artesão do barro, da palavra e da gastronomia. Era promover essa experiência da vivência do sabor da comida, mas também do sabor e da cor da arte dos vales, da afetividade”, sintetiza Beatriz. E foi isso que fizeram. Hoje a loja tem cerca de 90 produtos dos vales do Jequitinhonha, Mucuri, Rio Doce, Paraopeba, além do Sul de Minas e região metropolitana de BH. E ela faz questão de conhecer cada produtor. “É uma forma de promover a economia criativa, que fica tão distante, tão anônima”, diz.
E muito além de promover a gastronomia de Minas, o empório também tem a proposta de promover artistas regionais. Após o falecimento de Tau, em 2023, o local ganhou um espaço em sua homenagem, onde, de tempos em tempos, Beatriz reúne amigos e promove pequenos eventos com a presença de artistas locais. “Hoje nesse espaço fica o chapéu que Tau usava, tem alguns elementos que faziam parte da vida dele, como um violão que ele ganhou do pai”, comenta. Com tudo isso, o espaço ultrapassa o sentido de empório e oferece muito mais. “Dois artistas que amam sua terra e que tinham um sonho sonharam juntos e criaram juntos esse espaço de promoção de bem-viver”, sintetiza Beatriz.
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