Cannabis medicinal: como a política impulsiona a regulamentação

Cannabis medicinal: como a política impulsiona a regulamentação
Reprodução Frente Parlamentar da Alesp é pioneira na discussão sobre a cannabis

Frentes parlamentares estaduais, decisões judiciais e propostas no Congresso movimentam o debate

Naian Lucas Lopes IG

uso medicinal da cannabis e o desenvolvimento da cadeia produtiva do cânhamo industrial segue sendo um tema polêmico, mas que tomou conta das discussões do cenário político.

Assembleia Legislativa de São Paulo  se tornou pioneira ao formar um grupo de deputados estaduais, profissionais da saúdepesquisadores, representantes da indústria e associações de pacientes.

Coordenada pelo deputado estadual Caio França (PSB), autor da Lei 17.618/2023, que prevê o fornecimento gratuito de medicamentos à base de cannabis pelo SUS paulista, a frente atua em vários caminhos.

Além de promover audiências públicas e exposições, o grupo parlamentar acompanha a implementação da legislação estadual e busca garantir orçamento para iniciativas voltadas à produção, prescrição e distribuição desses medicamentos.

Em entrevista ao Portal iG, o deputado Caio França afirmou que os principais desafios estão relacionados ao escopo das patologias atendidas e ao avanço do Projeto de Lei 563/2023, de sua autoria, que propõe o cultivo da cannabis por universidades públicas e institutos

“O projeto prevê o cultivo para fins específicos de pesquisa e de produção de medicamento. Porque, ao meu ver, não faz sentido a gente ter que importar um medicamento que poderia ser produzido aqui, com todo o know-how das nossas universidades públicas”, afirmou.

O parlamentar reconhece dificuldades na tramitação da proposta, que, até o momento, teve a urgência aprovada na Assembleia, mas ainda não foi pautada nas comissões.

O deputado também destacou ao iG que a Frente Parlamentar tem destinado recursos para projetos sem fins lucrativos, como pesquisas universitárias, associações e clínicas públicas.

Um exemplo citado foi a inauguração da primeira clínica pública de cannabis medicinal em Ribeirão Pires, no estado de São Paulo, financiada com apoio da frente.

Ele também mencionou a decisão do Superior Tribunal de Justiça, em 2024, que determinou à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a regulamentação do cultivo de cânhamo para fins medicinais no prazo de seis meses.

Esfera federal

Congresso Nacional

Leonardo Sá/Agência Senado

Congresso Nacional

Na esfera federal, o debate sobre a regulamentação do cultivo e do uso da cannabis para fins medicinais e industriais avança de forma fragmentada.

Atualmente, não há uma legislação nacional que permita de forma abrangente o cultivo, produção ou comercialização da planta, mas existem dispositivos legais que autorizam usos específicos sob fiscalização.

O Projeto de Lei 399/2015, aprovado por uma comissão especial da Câmara dos Deputados em 2021, propõe a regulamentação do cultivo da cannabis para usos medicinal, veterinário, científico e industrial, restringindo o plantio a pessoas jurídicas, como associações e empresas.

No Senado, o Projeto de Lei 5511/2023, de autoria da senadora Mara Gabrilli (PSD-SP), busca estabelecer um marco regulatório para a cannabis medicinal e o cânhamo industrial, com foco em ampliar o acesso a tratamentos via SUS. A proposta está sob análise na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, aguardando relatoria.

Outro projeto em tramitação é o PL 89/2023, do senador Paulo Paim (PT-RS), que trata do fornecimento gratuito de medicamentos à base de cannabis pelo SUS, mas também não avançou nas etapas legislativas até o momento.

Especialistas

Cannabis

Reprodução Cannabis

O tema também tem sido debatido em audiências públicas. Em uma delas, realizada na Comissão de Desenvolvimento Econômico da Câmara dos Deputados, a pesquisadora Daniela Bittencourt, da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, argumentou que o país possui capacidade técnica para iniciar pesquisas sobre o cânhamo mesmo sem um banco de germoplasma e que o avanço da ciência sobre a planta poderia trazer benefícios econômicos, sociais e ambientais.

Segundo Daniela, o cultivo do cânhamo pode contribuir para a regeneração de solos degradados, a diversificação da produção agrícola e a independência na fabricação de canabinoides.

A pesquisadora também destacou que a legislação brasileira, especialmente a Lei 11.343/2006, atualizada pela Lei 13.840/2019, permite o uso científico e medicinal de substâncias controladas, o que abre possibilidade para a regulamentação do cânhamo com respaldo técnico.

Apesar dessas brechas legais, o cultivo de cânhamo continua proibido no Brasil, de acordo com a legislação vigente.

Há lei e portaria da Anvisa que listam a espécie Cannabis sativa como proibida, sem exceções claras quanto à concentração de tetrahidrocanabinol (THC).

O parágrafo único do artigo 2º da referida lei permite à União autorizar o cultivo para fins científicos ou medicinais, mas a falta de regulamentação prática impede a efetividade dessa previsão.

Pesquisa

Estudos como o relatório do Instituto Ficus, publicado em 2025, ao qual o Portal iG teve acesso, reforçam o potencial do cânhamo industrial como commodity estratégica para o Brasil.

O documento destaca aplicações nas indústrias têxtil, alimentícia e farmacêutica, além de abordar oportunidades relacionadas ao mercado global e às vantagens ambientais do cultivo da planta.

No entanto, o relatório também aponta uma série de barreiras legais e tecnológicas que dificultam o avanço do setor.

Entre os obstáculos legais, o documento cita a ausência de uma legislação específica sobre o cânhamo industrial, o que afasta investimentos e compromete a formação de cadeias produtivas.

A falta de regulamentação também limita o desenvolvimento de sementes adaptadas ao clima brasileiro, dificulta a obtenção de autorização para pesquisa e restringe a elaboração de normativas técnicas para o comércio internacional.

Do ponto de vista tecnológico, o relatório aponta a carência de maquinário específico para o cultivo e o processamento da planta, o alto custo de entrada no setor, a escassez de estudos genéticos em território nacional e a falta de padronização nas regras de comercialização.

Atualmente, o Brasil depende de sementes importadas, que nem sempre são adequadas às condições agrícolas locais, o que reduz a eficiência do cultivo e aumenta os riscos para os produtores.

Ainda de acordo com o Instituto Ficus, o desenvolvimento de cultivares nacionais com baixo teor de THC é uma das etapas necessárias para a consolidação da cadeia produtiva do cânhamo.

Iniciativas como o banco de genéticas desenvolvido por universidades e institutos federais demonstram potencial, mas esbarram nas restrições legais e na ausência de diretrizes regulatórias claras.

Judicial

No campo jurídico, a decisão do STJ em 2024 é um marco importante. Ao obrigar a Anvisa a regulamentar o cultivo de cânhamo para fins medicinais, o tribunal estabeleceu um prazo de seis meses para o órgão apresentar uma norma específica sobre o tema.

A decisão, no entanto, não contempla o uso industrial da planta, deixando o setor produtivo em situação de incerteza.

Na avaliação do deputado Caio França, parte dos entraves enfrentados decorre de preconceitos históricos e da falta de uma política nacional estruturada.

“É sempre importante esclarecer também que esses medicamentos já são autorizados aqui no Brasil. Só que são medicamentos muito caros. E eu não acho que é justo que somente famílias que tenham condição de pagar possam usufruir dessa terapia”, afirmou o parlamentar ao iG, ao defender a ampliação do acesso via SUS.

França também mencionou a repercussão da lei paulista em outras unidades da federação. Segundo ele, após a sanção da Lei 17.618/2023, mais de 20 estados apresentaram propostas similares. Além disso, projetos de lei com conteúdo semelhante foram protocolados na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.