Fim do telemarketing? Golpes e risco de troca por IA fragilizam mercado que emprega 1,4 milhão

De forma similar como o próprio serviço modificou as agências bancárias nos anos 90 e 2000, agora novas tecnologias mudam mercado
Por Gabriel Rodrigues e Raíssa Pedrosa O Tempo
Poucos setores exemplificam questões contemporâneas de forma tão clara quanto o telemarketing. Nele, encontram-se discussões sobre direitos trabalhistas, diversidade no ambiente de trabalho, a ameaça da inteligência artificial aos empregos e o crescimento desenfreado dos golpes no Brasil. Em um momento de tantas transformações, os empregos no setor diminuem e uma dúvida paira no mercado: o fim dos call centers está chegando?
Para alguns analistas, sim. A operação de telemarketing é uma das 15 ocupações com tendência de declínio mais rápido entre 2025 e 2030, segundo um relatório do Fórum Econômico Mundial (WEF) em parceria com a Fundação Dom Cabral (FDC) publicado neste ano. Mas, se há um fim no horizonte, ele ainda não chegou. Hoje, os telesserviços empregam cerca de 1,4 milhão de pessoas no Brasil, de acordo com a Associação Brasileira de Telesserviços (ABT) e com a Federação Nacional de Call Center, Instalação e Manutenção de Infraestrutura de Redes de Telecomunicações e de Informática (Feninfra). A ABT também calcula que o setor fatura R$ 43 bilhões anuais, com uma perspectiva conservadora de 1% de crescimento por ano.
Há um declínio, contudo. A Feninfra estima que foram perdidos cerca de 70 mil empregos só no telemarketing entre 2022 e 2024 por consequência direta da adoção do prefixo 0303, utilizado para identificar contatos ativos, quando o operador liga para o consumidor para oferecer determinado produto ou serviço. A previsão inicial do setor era uma derrocada muito maior, com perda de até meio milhão de empregos, o que foi contido pelo aquecimento da economia, com baixa inédita do desemprego no país, e a permissão para ligações de cobrança não utilizarem o prefixo, na perspectiva da Feninfra.
Para a professora da Unicamp e pesquisadora do mercado Selma Venco, o telemarketing vive um ponto de inflexão similar ao que ele ocasionou nas agências bancárias entre os anos 90 e 2000, quando teve um boom no Brasil e causou uma brusca redução dos empregos nesses estabelecimentos. “Agora, o próprio telemarketing passa por esse processo. A realidade virtual já é concreta para a redução do emprego. Como sempre ocorre com mudanças tecnológicas, há um movimento de resistência, mas elas nos atropelam, e o capitalismo vai tentando resolver da sua forma, com menos pessoas, menos custos e mais desigualdade social”, reflete a especialista.
A coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações de Minas Gerais (Sinttel), Lourdes Pires, lista uma série de fatores que impactaram diretamente os postos de trabalho em telecomunicações, além da aplicação do 0303: “a recuperação judicial da Oi, a desoneração da folha de pagamento e a mão de obra que tem sido substituída pela inteligência artificial em vários aspectos. Com isso, a redução foi notória”, enumera. Segundo ela, há casos de empresas que tinham mais de 5.000 funcionários e reduziram o contingente para pouco mais de 2.000.
Na ponta mais fraca de toda essa turbulência, estão os trabalhadores. É a experiência deles que o humorista Fernando Cunha tenta refletir em seu perfil do Instagram @telesincera. Ele utiliza sua própria vivência no telemarketing para satirizar o dia a dia dos call centers, que ele deixou ao ser demitido na pandemia. “Quando cheguei ao call center, foi assustador. Muita gente acha que é só pegar o telefone, mas não é. Há palavras que você não pode falar e um setor que investiga tudo o que você disser ao cliente. Você não está falando só com um cliente, mas com toda a empresa e por ela. É uma cobrança gigante, tem muito abuso de autoridade e chantagem emocional. Mas eu via oportunidades em cada espaço e subi de cargo”, conta o influenciador.
“Falo dessa dor na minha página. Os vídeos são compartilhados e as supervisoras e os gerentes também veem. Os operadores podem utilizar minhas falas para talvez comunicar à empresa que não estão satisfeitos. É uma comédia meio política”, conclui.
Golpes são prejuízo de mão dupla no telemarketing
Os brasileiros sofrem, em média, 4.600 tentativas de golpe financeiro por minuto por meio de ligações ou mensagens, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A voracidade dos golpistas prejudica não só os consumidores, mas o próprio telemarketing. A desconfiança dos consumidores é tamanha que eles estão cada dia menos dispostos a atender uma ligação de um número desconhecido.
“No contato ativo, a desconfiança pode impactar negativamente a receptividade”, confirma o vice-presidente de operações e transformações da AeC, Celso Mateus Ramiro. O contato ativo é aquele em que o operador liga para o consumidor. Hoje, a modalidade representa 3% das ligações da empresa, diz o executivo.
“As pessoas não atendem mais o telefone. Mesmo o serviço de proteção ao consumidor, para registrar o número dele e bloquear as chamadas, é um direito do consumidor, mas uma barreira concreta para o telemarketing”, completa a professora Selma Venco. Ela faz referência ao Não Me Perturbe, serviço da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em que o consumidor pode se registrar para deixar de receber ligações de empresas cadastradas, ainda que não sejam golpes.
Uma das estratégias do setor para tentar se blindar e convencer os consumidores a atender as ligações é o Origem Identificada, um projeto de identificador de chamadas da Anatel que prevê que o consumidor saiba, além do prefixo 0303, quem está ligando e confirme que se trata de uma empresa real e não um golpe. A ABT é uma das entidades do setor que apoia a proposta. “Nós apoiamos a estruturação desse projeto e hoje nós apoiamos efetivamente a sua implementação, porque ele interessa principalmente à questão de segurança. É uma questão muito chata e muito cara para as pessoas hoje em dia”, comenta o diretor executivo da associação, Gustavo Faria.
IA pode ‘substituir call center inteiro’, mas movimento é gradual
A inteligência artificial (IA) é a ameaça que sobrevoa os trabalhadores no século 21 e, nos call centers, é uma realidade. O discurso da indústria do telesserviço e dos desenvolvedores das soluções tecnológicas é que as novas ferramentas não substituirão os trabalhadores e somente vão aprimorar o trabalho. Por outro lado, eles admitem que as habilidades exigidas dos empregados podem mudar.
A empresa Resolva AI mostra na prática como a Inteligência Artificial tem sido utilizada nesse mercado. Ela desenvolveu uma ferramenta de IA capaz de interagir com clientes de forma mais dinâmica do que chatbots convencionais. “A IA permite que todo esse processo de atender ou fazer uma ligação, responder um WhatsApp, um e-mail ou uma dúvida em uma rede social, por exemplo, possa ser feito por uma tecnologia chamada de agentes de inteligência artificial”, explica o fundador da startup, Vicente Camillo.
A ferramenta consegue se comunicar por voz ou texto com o cliente tanto nos contatos ativos (quando eles partem da empresa), quanto nos passivos (quando partem do cliente). Vicente explica que a conversa com a IA é bem parecida com o ChatGPT, por exemplo. Ou seja, se um cliente entra em contato com a empresa para contestar uma cobrança em dobro na fatura, a própria IA pode “escutar” a reclamação e oferecer a solução. Ela oferece algo como “deseja receber estorno na próxima fatura?”, e o cliente responde sim ou não.
“A gente consegue substituir um call center inteiro”, revela Vicente Camillo, pontuando que a IA, por enquanto, se limita às questões mais simples. “Estamos entrando em uma nova era de resolução de problemas. Claro que isso não vai ocorrer do dia para a noite, demandará tempo, absorção tecnológica, mudança de mentalidade. Tem um processo muito longo aí, mas é o mesmo que aconteceu com a internet”, vislumbra.
A presidente da Feninfra, Vivien Suruagy, pondera que a mudança não representa total substituição da mão de obra humana. “Eventualmente, serviços mais simples poderão ser ocupados pela máquina, porém o grau de eficiência e satisfação que a inteligência artificial como apoio traz requer a formação de muito mais trabalhadores qualificados e que, claro, também custarão mais”.
“A IA hoje é necessária. É um movimento que visa ampliar a capacidade e as habilidades dos operadores do teleatendimento, exponencializando essa capacidade. É um desafio treinar, equipar e dotar esse operador de conhecimento para poder operar e prestar o melhor atendimento para melhorar a experiência do cliente”, pontua Gustavo Faria, diretor executivo da ABT. “A IA reduz para uma questão de minutos coisas que você teria dias para dar resposta”, acrescenta.
O diretor salienta que, apesar de a IA executar algumas tarefas de um ser humano, algumas questões ainda demandam atendimento de uma pessoa. “Temos quatro gerações coexistindo que demandam soluções diferentes e um tipo de atendimento igualmente diferente com que o setor terá que responder”, reflete, lembrando que existem pessoas que se contentam com o atendimento virtual e também aquelas que fazem questão de ser atendidas por um humano.
IA nos call centers
A diretora de gente e transformação da empresa de telesserviços Contax, Márcia Pollard, acrescenta que, hoje, o mercado continua a demandar atendimento humano em situações complexas. “Para temas sensíveis, continuará existindo atendimento humano, isso não mudará, e cada vez mais quem atenderá será uma pessoa mais especializada, mais bem treinada, com escrita e fala melhor”, afirma.
A empresa, que hoje conta com 15 mil funcionários, tem operações no Acre, em Pernambuco, na Bahia, no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul e está em processo de expansão, após passar por uma recuperação judicial. Com demanda por atendimento feito por humanos, no primeiro trimestre deste ano, a Contax contratou o mesmo número de pessoas que em todo o segundo semestre de 2024 e deve contratar mais.
Na empresa, a IA é encarada como uma aliada e utilizada em diversos processos no call center, inclusive em setores internos, como RH. “A gente usa várias ferramentas de IA para facilitar”, diz Márcia. Para ela, o desafio hoje para as marcas e as operadoras é fazer com que o contato ativo gere interesse em ouvir. Ou seja, descobrir quais são as melhores formas de contato com um cliente. E, para alguns, ferramentas de IA podem ajudar. “Às vezes a pessoa não quer contato com um humano”, pontua.
A AeC, fundada em Belo Horizonte e uma das principais do mercado, tem uma proporção de 500 profissionais dedicados ao desenvolvimento tecnológico para cerca de 53 mil funcionários, calcula o vice-presidente de operações e transformações da empresa, Celso Mateus Ramiro. “Acreditamos que a tecnologia deve capacitar as pessoas — não substituí-las. Utilizamos a IA em diversas etapas de nossas operações, proporcionando maior eficiência, precisão e personalização em cada interação com o cliente. Implementamos soluções inovadoras para identificar e contratar colaboradores com alta propensão à performance excepcional. Além disso, escalamos a IA generativa para analisar voz e dados durante os atendimentos, atuando como um coach em tempo real para os atendentes”, detalha.
Crédito: Flavio Tavares / O Tempo
Mais IA, mais qualificação?
A ideia de que trabalhos qualificados surgirão na mesma proporção em que as funções mais básicas desaparecerem, contudo, é uma fantasia, na visão da professora da Unicamp Selma Venco. “A geração de empregos não se compara à capacidade de reduzi-los. O operador de telemarketing poderá se qualificar? Sim, mas quantos conseguirão trabalhar com IA, que é o topo da pirâmide, a tecnologia de ponta? É uma questão de acesso a esse conhecimento. Para passar por um processo de requalificação, essas pessoas precisarão mobilizar tempo e dinheiro”, reflete ela.
O telemarketing é também uma porta de entrada no mercado para grupos minorizados. Aproximadamente 70% dos trabalhadores são mulheres — metade delas, negras e pardas — e 20% são do público LGBTQIAPN+, além disso, uma boa parte é composta por profissionais 50+ e refugiados de outros países, de acordo com a ABT. Historicamente, são grupos com acesso dificultado à formação profissional e a oportunidades de trabalho, que agora podem ter uma chance a menos no mercado, considera a professora.
Telesserviços rumo ao Nordeste
Cidades do Nordeste têm se tornado um polo do telesserviço nacionalmente. Nos últimos anos, a concentração de postos de trabalho na região, em capitais e no interior, saltou de 10% para 30% do volume nacional, atrás apenas do Sudeste, que conta com 55% dos empregados do setor. Uma série de fatores atraem as empresas à região. “Não é por causa de custos inferiores do trabalho, pois a legislação é a mesma, mas pela menor carga tributária que encontramos em diversos municípios, por exemplo de ISS e IPTU, e também por termos menor rotatividade de mão de obra [no Nordeste]”, especifica a presidente da Feninfra, Vivien Suruagy.
O diretor executivo da ABT, reforça essa análise e pontua que, no Nordeste, o telesserviço é uma das principais atividades em muitos municípios. “Às vezes, o nosso setor é responsável por dar emprego, dependendo da cidade, para até 20% da população local. Em cidades maiores, uma em cada 12 pessoas que estão ocupadas trabalha em uma empresa do nosso setor”, revela Gustavo.
Minas Gerais prossegue como o segundo maior empregador nacional, atrás de São Paulo. O número de trabalhadores, entretanto, tem diminuído — em uma década, houve uma redução de cerca de um quarto dos postos de trabalho no estado, estima a Feninfra.
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