Corregedoria da PRF aponta ‘insistência’ de inspetor, mas nega assédio sexual por ele ser ‘crível’

Corregedoria da PRF aponta ‘insistência’ de inspetor, mas nega assédio sexual por ele ser ‘crível’
Denuncia foi arquivada pela Corregedoria-Geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF)

Na decisão, Comissão que analisou o procedimento interno analisou separadamente e contestou as versões de todas as seis vítimas que denunciaram o policial

Por José Vítor Camilo O Tempo

Após o relato de uma estagiária sobre possível assédio vindo de um inspetor da  Polícia Rodoviária Federal (PRF) lotado em Minas Gerais, a Corregedoria-Geral da corporação concordou ter ocorrido “insistência do acusado” para dar carona a ela, causando constrangimento na jovem, de 16 anos. Porém, segundo a apuração, “a intimidação não teve relação com a autoridade do acusado. Assim, não há conduta infracional nos fatos narrados”. Já sobre o policial estar com a arma no colo, durante a carona dada, a Comissão concluiu que “o policial em seu veículo particular deve andar com a arma em condições de uso, em local de fácil acesso, não pode ser entendido como irregular o armamento ficar sobre sua perna ou mesmo em local que seja visível aos demais ocupantes do veículo”.

No caso da primeira denunciante, a policial rodoviária federal que o inspetor teria tentado beijar a força, a Comissão negou a hierarquia entre a mulher e o homem denunciado, o que desqualifica o crime de assédio sexual. “O crime de assédio sexual pressupõe a existência de uma relação laboral entre o agente e a vítima, em que o agente usa a hierarquia ou ascendência de seu cargo, emprego ou função com a finalidade de obter a vantagem sexual”, escreveu. 

Foi feita uma investigação para apurar o grau de hierarquia entre eles e em mais de duas páginas do relatório com a conclusão do processo administrativo ao assunto, detalhando cada uma das indicações e pedidos de transferência da policial. Segundo informações da vítima, do próprio superintendente e do então superior hierárquico direto da denunciante, ela estaria em vias de ser transferida para trabalhar justamente com o inspetor que teria a assediado. Desde fevereiro de 2022 o CNJ decidiu que não é necessário haver relação hierárquica para se considerar um assédio sexual e a decisão da corregedoria ficou pronta somente em 2023.

Assim como no caso da adolescente, uma a uma das vítimas tiveram suas versões contestadas e arquivadas pelos corregedores. No caso da servidora que disse ter sido tocada na coxa e na barriga, a comissão decidiu: “Não há total coerência que indique o assédio sexual. E o dito pelo PRF **** (acusado) mostra-se crível”.

 

Uma outra vítima, que disse serem frequentes os olhares e encaradas do inspetor, chegou a afirmar que as insinuações ultrapassavam “o limite de uma simples cantada”, sendo insistente e inconveniente, mesmo ela dizendo que não tinha interesse e que tinha namorado. Ela ainda relatou no processo momentos em que o inspetor a cercava, quando eles estavam a sós, impedindo que ela saísse da sala, e que olhava para o seu corpo e até fazia insinuações sobre as suas nádegas. Depois de reclamar da postura do policial, a servidora denunciou que passou a ter problemas de convivência, recebendo contestações acerca de seu trabalho até o ponto de decidir parar de trabalhar na superintendência.

Sobre isso, a comissão entendeu que “da instrução probatória emerge que as insinuações do PRF **** para com a pretensa vítima não guardam total coerência com os demais elementos probatórios colhidos. E o dito pelo PRF **** mostrou-se crível”. A Corregedoria-Geral citou como exemplo de “contradição” o fato de que a vítima teria falado em depoimento que não teve mais contato com o acusado após sair da PRF, entretanto, teria enviado uma mensagem de parabéns pelo aniversário dele pouco após sua saída do trabalho na corporação.

Importante destacar que, em setembro de 2019, quando a defesa do inspetor pediu para a vítima ser enquadrada por “falso testemunho” justamente por conta da suposta omissão sobre a mensagem de aniversário, a própria Comissão da Corregedoria-Geral decidiu que a jovem já teria se retratado sobre a mensagem e que o pedido de imputação de crime não seria aceito. Apesar da retratação da vítima e da não imputação do suposto crime,  a mensagem de parabéns também foi usada na conclusão do processo para justificar a não aceitação de tudo denunciado pela mulher.

 

A investigação concluiu ainda que “Claramente, observa-se que as testemunhas foram instadas (estimuladas) a informar sobre possíveis situações ou fatos que envolviam o PRF *****, sem delimitação fática ou temporal. Daí surgiram denúncias/representações de possíveis assédios tanto moral quanto sexual sem ligação com a representação”, escreveram os corregedores no relatório conclusivo.

A Investigação Preliminar havia constatado, no entanto, que os relatos das demais vítimas levou à identificação de um “padrão” no comportamento do policial de acordo com os relatos das servidoras. “Nos relatos de mulheres em diferentes situações funcionais e sociais, percebe-se tal padrão de conduta, como o insistente oferecimento de carona; o toque na perna e na cintura; a insistência em manter contato físico e visual; o uso de condição hierárquica para indicar superioridade e/ou influência e, com as insistentes negativas das mulheres abordadas, a tentativa de denegrir suas imagens (tratar como incompetentes, questionar opções sexuais), impor restrições”, consta no relatório que pediu a abertura do inquérito.

Comissão masculina

A primeira das seis denúncias por assédio sexual e moral feitas contra o Chefe do Gabinete da PRF em Minas Gerais aconteceu no dia 18 de julho de 2018, de forma anônima, por meio da ouvidoria da corporação. A partir dali, foi aberta uma Investigação Preliminar da Corregedoria, que ouviu a vítima e, em seguida, outras cinco denunciantes e diversas testemunhas do caso. O processo preliminar durou menos de um mês e concluiu pela necessidade da abertura de um procedimento disciplinar contra o agente denunciado, sugerindo, ainda, que a comissão de processamento contasse com pelo menos uma servidora em sua composição. Cinco anos depois, formado só por homens, o colegiado concluiu pela inocência do suspeito.

 

Para pedir que a comissão tivesse uma mulher no quadro, a Investigação Preliminar destacou que os atos apurados tinham relação com a questão de gênero. A princípio, isso até foi cumprido, mas somente até meados de 2020. Em março daquele ano, as atividades tiveram que ser interrompidas e as oitivas dos envolvidos suspensas, após o início das medidas sanitárias para controle da Covid-19.

Entretanto, quando a Comissão ia enfim retomar seus trabalhos, em agosto de 2020, a única mulher do colegiado acabou transferida para o cargo de Coordenadora de Recursos Humanos da Diretoria de Gestão de Pessoas, sendo afastada da apuração. Menos de um mês depois da transferência da mulher, um homem foi nomeado para o cargo, fazendo com que os últimos três anos do processo fossem com um colegiado formado exclusivamente por policiais masculinos.

“As pretensas irregularidades não guardam relação de tempo ou mesmo de objeto, já que se tratou em sede investigativa de pretensos casos de assédio moral e sexual simplesmente por, em tese, o autor das irregularidades ser o mesmo servidor”, justificou a comissão ao inocentar o acusado.

 

Impactos na saúde psicológica das vítimas

O assédio sexual e moral são crimes previstos no Código Penal que podem ser denunciados formalmente à polícia, podendo levar a uma pena de prisão de 1 a 2 anos. Entretanto, quando ocorrem dentro de uma empresa, o medo de acabar punido por denunciar um superior hierárquico costuma levar ao silêncio, o que, segundo a psicanalista Bruna Rafaele, “piora o sofrimento psíquico da vítima”. 

“Os homens ao serem assediados, em muitos casos se sentem coagidos e nem mesmo falam do fato com familiares e amigos. As mulheres também podem passar por isso, com medo de seus parceiros e familiares terem reações violentas contra o assediado ou mesmo ainda terem que escutar ‘mas você vai para o trabalho com essa roupa?’ ou ‘você não provocou a cena?’. Eu reforço, o importante durante o período em que se sofre o assédio é a vítima não se sentir em hipótese alguma culpa, pois a pessoa violenta é violenta por ela escolher fazer isso, independentemente da roupa e da maneira como a vítima se porta”, fala a profissional. 

Segundo ela, é importante que as empresas e instituições públicas mantenham uma escuta aberta, para que todos os funcionários possam verbalizar com franqueza o que se passa. “Já existem canais de denúncias anônimas que são feitas em vários órgãos, incluindo instituições públicas que são investigadas pelo Ministério Público (MP). Nem sempre o assédio está associado a um assediador e uma vítima, pode ocorrer cenas de assédio em que um grupo assedia uma única vítima ou até mais de uma vítima”, completa.

 

Bruna também defende que é necessário que empresas e órgãos públicos apliquem punições mais rigorosas e com base na lei nestes casos. “Uma outra opção para diminuir os casos de assédio é que as empresas e órgãos públicos se encontrem na obrigação de auxiliar as vítimas no processo contra o assediador, mostrando para perversos que queiram fazer outros indivíduos como vítimas que a sociedade não aceita esse comportamento completamente agressivo, que causa tantos danos, muitas vezes irreparáveis, para suas vítimas”, concluiu a psicanalista.

Também procurada para falar de forma genérica sobre assédio sexual e moral, sem ter acesso a qualquer informação acerca do caso específico envolvendo o policial rodoviário federal, a psicóloga clínica Débora Galvani Klefenz pontua que, em casos de assédio moral e sexual no trabalho, é muito comum que as vítimas não denunciem o assediador por medo de perderem seus empregos. “Por isso, quando uma primeira pessoa denuncia, é normal que outras vítimas se pronunciem. Mesmo que não oficialmente, mas se solidarizando à pessoa, contando também já terem passado por isso. Mas, nem sempre, essas pessoas expõem a denúncia oficialmente por esse medo de perder o ganha pão. Quem denuncia costuma ter dificuldade até em ter testemunhas por causa disso”, disse.

Para Bruna, em casos de assédio sexual, é comum o surgimento de novas vítimas após uma primeira denúncia, uma vez que, normalmente, o assediador age “em série”.  “O assediador, em muitos casos, tem a estrutura que na psicanálise se chama de ‘perversão’, o que na cultura comum chamamos de psicopata ou sociopata. O assediador faz isso em série, ou seja, ao longo de sua vida, já submeteu outras pessoas às mesmas condições de abuso emocional, moral e sexual. Gosto de lembrar que, em muitos casos de assédio sexual, ocorre também o assédio moral”, detalha a profissional.

 

Esclarecimentos da PRF

- Qual foi o motivo para o caso, com relatos de pelo menos seis mulheres contra o profissional, ter levado cinco anos para acabar? 

Os principais motivos foram a pandemia de COVID 19, que suspendeu atividades presenciais não-essenciais, conforme orientação da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Corregedoria-Geral da Polícia Rodoviária Federal, decorrentes da edição da MP nº 928/2020, a suspensão dos prazos prescricionais dos processos administrativos, e a movimentação de servidores-membros da comissão processante para exercício de cargos comissionados e para capacitação. 

- Por que a PRF montou uma comissão processante no caso formada exclusivamente por homens?

 

Na sua composição inicial, a comissão contava com uma servidora PRF, que participou de 20 oitivas, inclusive das denunciantes. A servidora desligou-se da comissão em razão de nomeação para cargo comissionado e a vaga foi preenchida de acordo com a disponibilidade de servidores com capacitação em Processo Administrativo Disciplinar.

- Como a corregedoria pode ter concluído que não havia provas suficientes para inocentar o acusado se, na investigação preliminar, foi pontuado que ficou claro a existência de um padrão nos assédios cometidos pelo suspeito, contra vítimas de diferentes setores e em períodos diferentes? O depoimento das vítimas não deveria ser considerado uma prova em casos de crimes sexuais pela corregedoria, como ocorre na Justiça comum?

A leitura do processo comprova que os depoimentos das testemunhas foram, sim, levados em consideração, devidamente analisados e confrontados com os demais elementos arrecadados. Nos anos de 2022 e 2023, 75% dos Processos Administrativos Disciplinares (PAD) sobre "assédio moral" ou "assédio sexual" no âmbito das Corregedorias da Polícia Rodoviária Federal resultaram em responsabilização disciplinar dos autores ou em Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). Nesse biênio, foram aplicadas cinco sanções em oito procedimentos instaurados, sendo uma demissão e quatro suspensões, além de ajustamento de conduta em outro procedimento, acarretando arquivamento em dois daqueles instaurados.

 

No processo administrativo, há diferença entre os procedimentos ‘preliminar’ e ‘contraditório’. No primeiro, verificam-se os indícios que fundamentam a abertura do processo em si, que não são submetidos ao contraditório, enquanto no segundo buscam-se os elementos probatórios capazes de sustentar, ou não, os indícios apresentados inicialmente. O investigado pode, inclusive, não saber que está sob investigação. O processo então investiga, analisa, cruza e compara os indícios arrecadados, produz novos elementos, se necessário, e os interpreta e avalia, com atenção ao princípio de presunção da inocência, de forma que eventual responsabilidade e punição passam pela verificação e comprovação dos fatos narrados. 

- O servidor denunciado recebeu alguma punição ou, ao menos, treinamento acerca de assédio moral e sexual? Ele segue lotado na superintendência?

O servidor não foi penalizado, o procedimento foi arquivado e o servidor não passou pelos procedimentos mencionados.

 

- Porque parte das testemunhas arroladas pelas vítimas não foram ouvidas no processo?

De acordo com o Relatório Final da Comissão de Processo Administrativo e Disciplinar, todas as testemunhas indicadas tanto pelas vítimas quanto pela defesa foram ouvidas no bojo da apuração. No decorrer do processo, houve a desistência de um servidor. No mais, foram ouvidas todas as pessoas mencionadas pelas testemunhas arroladas. A produção das provas passa pelo crivo dos integrantes da comissão, que possuem legalmente independência para avaliar a pertinência daquelas provas que se pretende produzir.

- O processo dedicou dezenas de páginas para contestar os depoimentos de cada uma das vítimas. A Corregedoria não considerou que, em casos de assédio no trabalho, especialmente envolvendo pessoas de hierarquia superior, é comum que, após uma primeira denúncia, surjam novas vítimas? 

 

A razão de existir das Corregedorias é apurar e responsabilizar, com o rigor da lei, toda e qualquer conduta de servidor incompatível com a dignidade da função pública, seja contra também servidor, seja contra qualquer pessoa que se sinta violada em seus direitos fundamentais. E para isso existe o devido processo legal, que instruído à luz dos fatos, das provas e da lei, assegurado o amplo direito de defesa. É a esses aspectos que deve se ater. Todas as unidades da PRF mantêm canais para recebimento de denúncias ou representação que envolva não só a temática do assédio sexual ou moral, mas também qualquer outra de viés disciplinar. No caso do processo referido, após o julgamento do feito, que se deu com a publicação da decisão administrativa, não houve apresentação formal de protesto ou manifestação de inconformação por parte da representante quanto ao desfecho do processo. Por fim, cabe destacar que o PAD em comento foi acompanhado desde o seu início pelo Ministério Público Federal em Minas Gerais, tendo aquele Parquet conhecimento de sua tramitação e conclusão desde que os atos foram produzidos.

- Existe a possibilidade desse processo interno ser novamente aberto? Se isso ocorrer, mulheres farão parte da comissão? 

Para a reabertura de processo administrativo concluído e arquivado é necessária a apresentação de fato novo, conforme determina o artigo 174 da Lei 8112/90. Quanto à participação de mulheres na Comissão, a definição dos integrantes responsáveis pela condução do processo observará a presença de servidoras em sua formação. Sobre a apresentação de defesa e testemunhas por parte das eventuais vítimas, essa somente é possível ao acusado ou acusada no procedimento, sendo franqueado ao representante ou denunciante a exposição dos fatos de forma oral ou escrita, arrolando as testemunhas relativas, sem prejuízo de outros elementos não vedados pelo ordenamento jurídico.

 

- A PRF pretende, após a exposição do caso, fazer algo para mudar essa política com relação ao assédio sexual e moral dentro da corporação? 

Enquanto órgão de segurança pública sob a hierarquia do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), a atual gestão da Polícia Rodoviária Federal vem cotidianamente trabalhando para a conscientização, enfrentamento e combate a todos os tipos de assédio, seja dentro ou fora da instituição, em total sincronia com  as políticas públicas sobre o tema. Nesse cenário, destacamos a recente publicação do Plano de integridade PRF, que pontualmente prevê a atualização da política de abordagem e Direitos Humanos e a criação da política de enfrentamento a todos os tipos de assédio como pautas prioritárias. Consciente da sensibilidade do tema, especialmente para uma organização com público majoritariamente masculino, a gestão da PRF está trabalhando em todas as suas áreas para o fortalecimento da cultura de integridade voltada ao respeito e à valorização da diversidade, tudo em sintonia com a proteção e a defesa dos Direitos Humanos, área que foi totalmente reformulada e fortalecida, tanto da Direção-Geral quanto dos estados. Como exemplo concreto, temos a campanha institucional “integridade é um valor PRF”,  na qual cards com o tema foram difundidos a toda instituição, inclusive nos estados.

Reiteramos que a Polícia Rodoviária Federal não compactua com desvios de conduta de qualquer natureza por parte de seus servidores, sendo todas as denúncias apuradas e punidas com o rigor da lei e o respeito ao direito de defesa. A PRF dá apoio incontestável à proteção dos Direitos Humanos de seus servidores e da sociedade, sendo referência nacional ao combate à exploração sexual de crianças e adolescentes com o Prêmio Nacional de Direitos Humanos e o reconhecimento da Organização das Nações Unidas.