Sem identidade: só em 2024, Juiz de Fora soma 273 mortes sem nomes

Sem identidade: só em 2024, Juiz de Fora soma 273 mortes sem nomes
Na região onde ficam túmulos sem identificação, números substituem nomes (Foto: Leonardo Costa)
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Covas rasas são destino final de pessoas com identidade tida como “ignorada”, que não têm reconhecimento como sujeito civil 

Por Pâmela Costa Tribuna de Minas 

Faz parte do ditado popular dizer que, na morte, todos somos iguais. O pensamento sugere que as diferenças da vida se dissolvem em uma igualdade plena no fim. Para sustentar essa crença, outra máxima é importada: “da vida, a gente não leva nada”. Porém, são pessoas com identidade em vida- ainda que não formalmente – que na morte levam consigo nada, nem mesmo o nome. É sobre aqueles que permanecem sem memória que a Tribuna se debruça nesta última reportagem da série sobre o Cemitério Municipal.

Era comum que as pessoas enterradas sem identidade fossem chamadas de indigentes – contudo, uma revisão do termo e adequação dos registros das certidões de óbito os denominam agora como “ignorados” ou “óbitos desconhecidos”. A nomenclatura se refere àqueles que, na morte, não tiveram acesso ao básico da cidadania, que é o reconhecimento como um sujeito civil. Os nomes nas lápides se tornam números, e as covas, rasas.

De acordo com o Sindicato dos Oficiais de Registro Civil de Minas Gerais, somente em 2024, Juiz de Fora já registrou 273 casos de mortes de pessoas desconhecidas. No estado, neste mesmo período, esse número sobe para 4.543. No que se refere ao enterro, a Prefeitura de Juiz de Fora garante que os casos são raros, ao menos no Cemitério Municipal da cidade. De acordo com o executivo, em 2023 foram cinco casos e, até o momento, em 2024, seis enterros de pessoas desconhecidas ali.

O doutor em História e professor de Patrimônio Cultural e História das Artes, Leandro Graziosi, conta que os “ignorados” sempre estiveram presentes na história da cidade – apesar de todo o aceno ao progresso que Juiz de Fora se propõe. “Sempre houve partes do cemitério destinadas a eles. Nas laterais e partes mais altas. Depois, com a construção de ossários já no século XX, eles eram enterrados provisoriamente, e depois seus restos mortais levados para ali. Quando o morto não tinha quem reclamasse por ele, ele ficava transitando até ser colocado em covas, gavetas ou ossários coletivos”, explica o professor.

Atualmente, os ossos das pessoas tidas como “ignoradas” são enterrados em covas rasas – que possuem cerca de 1,55 m de altura. Nessas sepulturas públicas, o corpo permanece por três anos, até dar lugar a um novo sepultamento. Os ossos, em geral, permanecem no local, mas se tornam difíceis de serem  localizados.

Oito anos do Relatório da Comissão Municipal da Verdade

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Entre não identificados enterrados no local, estão vítimas da ditadura militar (Foto: Leonardo Costa)

Na esteira da dificuldade de localização de alguns corpos que são enterrados sem identificação, o Relatório da Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora, publicado em 2016, buscou, entre outros aspectos, evidenciar aqueles que foram enterrados sem identificação de maneira proposital.

“Nós pesquisamos o livro do Cartório Vilela com registros do período da ditadura militar. Eram muitos ‘indigentes’, jovens, estudantes universitários e, para espanto, morriam afogados no Rio Paraibuna”, conta Cristina Couto Guerra, que chegou a presidir a comissão. Durante a ditadura, as covas dos ‘indigentes’ eram usadas para enterrar presos políticos vítimas da violência. Em Juiz de Fora, não foi diferente, conforme mostrou o relatório da Comissão Municipal da Verdade.

O documento, que possui mais de 200 páginas, serviu como uma prestação de contas à sociedade sobre uma realidade para alguns ocultas. “Há suspeitas, não confirmadas, do envolvimento de segmentos da sociedade civil em práticas de irregularidades e ilegalidades relacionadas com a repressão mediante a utilização de cartórios de registro civil e de cemitérios, no sentido de conferir ‘legalidade’ a determinadas mortes”, revela trecho do arquivo.

Guerra, que participou da confecção do documento, relata sobre os bastidores do processo em entrevista à Tribuna. “Éramos sete integrantes: eu, Betão, Flávio Cheker, Wilson Cid, Fernanda Sanglard, Helena Mota e Antônio Henrique, e a Comissão foi criada para fazer o trabalho por um ano”, conta. O prazo acabou sendo curto para a quantidade de conteúdos descobertos e que precisavam de ainda mais aprofundamento.

“Fizemos pesquisa no cartório e tinha um funcionário antigo, que trabalhava lá na época da ditadura. Ao pesquisar alguns livros, chamou nossa atenção a quantidade de ‘indigentes’, na maioria jovens”. Ela acrescenta que em um único dia, cerca de sete jovens haviam sido dados como mortos por suicídio por afogamento no rio que corta a cidade. Durante esse período, foi cunhado o termo “suicidado”, para se referir aqueles que eram assassinados, mas que o caso era simulado como suicídio. 

Ela continua explicando, “pesquisamos também o livro do Cemitério Municipal, e também chamou a atenção que o enterro dos ‘ignorados’ era pago pelo Exército. Aquele senhor mais antigo do cartório relatou que chegavam jipes do quartel com atestados, e mandavam que eles confeccionassem o atestado de óbito a partir deles”. Apesar do grande volume de informações que foi descoberto por meio do trabalho do grupo, ela conta que o tempo foi pouco. 

O estudo mostra que, em determinados cartórios, vários atestados de óbito não traziam o nome da pessoa morta, tampouco o do médico que liberou o corpo. Com isso, muitas pessoas passavam a ser enterradas como “ignoradas”. “Destaca-se o fato de atestados de óbito de pessoas tidas como ‘indigentes’ conterem no registro a sua filiação completa, e cujos sepultamentos no Cemitério Municipal de Juiz de Fora foram pagos sem a emissão e registro de recibo”, aponta.

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A parte mais alta do Cemitério Municipal de Juiz de Fora abriga os não identificados, pessoas mais pobres e membros amputados, todos em covas rasas, sem distinção (Foto: Leonardo Costa)

Como ter acesso à identidade

A emissão da Carteira de Identidade é feita junto com a Polícia Civil. Por meio dela, as pessoas tem acesso aos direitos como cidadão em todo o território nacional. Atualmente, a Carteira de Identidade Nacional (CIN) é o documento de identificação único, e tem por base o Cadastro de Pessoa Física (CPF) para a sua emissão.  A primeira via é totalmente gratuita.

O serviço pode ser acessado nas Unidades de Atendimento Integrado (UAIs) do município. É necessário levar o CPF, caso já tenha, e em negativa, também é possível emitir o documento na hora. Também é preciso apresentar certidão de nascimento ou casamento. Já a fotografia é tirada na própria unidade, durante o atendimento. Outra parcela da população, como as pessoas em situação de rua, são encaminhadas pela própria Secretaria de Assistência Social (SAS) do município para confeccionar a documentação.

Por meio do Serviço Especializado em Abordagem Social e do Centro Pop, pessoas em situação de vulnerabilidade recebem atendimento multidisciplinar. No caso da ausência de documentos, a demanda é identificada e encaminhada para os órgãos responsáveis por fazer a emissão de documentos de identificação. Segundo Malu Salim, secretária da pasta de Assistência Social no município, o acesso a documentação “é um direito humano universal, e  identificado como primeiro instrumento de garantia da cidadania”.

Ela explica que é por meio desses documentos básicos, como a identificação, que as pessoas conseguem, em vida, acessar os programas de transferência de renda, como benefícios emergenciais, bolsas, e também o auxílio funeral. Somente entre junho de 2022 a setembro de 2024, 188 pessoas tiveram a concessão de auxilio por morte, de acordo com dados da Prefeitura.

“Todos que acessaram o auxílio funeral foram identificados, o serviço de abordagem teve papel fundamental para que isso ocorresse, porque buscam no nosso sistema de informação os dados do usuário e quando não encontram, buscam por familiares, assim sempre tivemos sucesso na identificação de 100% dos usuários que utilizaram o benefício”, explica.