PCC compra imóveis de mais de R$ 5 milhões em área nobre de São Paulo para lavar dinheiro do tráfico
Imóveis são pagos à vista e em dinheiro vivo para esconder lucro com atividade criminosa
Na cafeteria no térreo do edifício com varandas envidraçadas, as mesas estavam quase todas ocupadas no fim da tarde da última quinta-feira (14). Entre os frequentadores, um jovem de colete esportivo e camisa social participa de uma reunião online.
Vitrines de um mercado imobiliário ascendente, novos prédios comerciais e residenciais substituíram sobrados e galpões no Tatuapé, atraindo para o bairro da zona leste de São Paulo um tipo de público que dá ao lugar ares de Faria Lima.
Um cenário de transformação urbana que também atraiu integrantes da facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) interessados em comprar imóveis que chegam a ultrapassar R$ 5 milhões para lavar dinheiro do tráfico de drogas, segundo o termo de delação ao Ministério Público Estadual de Antônio Vinicius Lopes Gritzbach.
Assassinado no dia 8 de novembro no aeroporto internacional de Guarulhos, Gritzbach tirava proveito do seu trânsito no ramo para facilitar o registro em nomes de laranjas de bens de líderes da organização criminosa e de outros traficantes.
Nas 978 páginas de documentos às quais a Folha teve acesso, Gritzbach diz ter conhecimento de mais de dez imóveis negociados para favorecer a ocultação do lucro de atividades ilícitas.
A preferência era por empreendimentos da Porte Engenharia e Urbanismo, construtora protagonista da transformação do bairro, na qual o delator trabalhou de 2014 a 2018.
Na rua Platina, via paralela à Radial Leste que liga as estações de metrô Tatuapé e Carrão, a Porte redesenhou o horizonte com edifícios corporativos, entre os quais está o Platina 220, o mais alto da cidade com 172 metros.
É também da Porte o prédio citado no início da reportagem. O edifício Crona 665 foi construído sobre um terreno em que um homem apontado como laranja de Anselmo Becheli Santa Fausta, líder do PCC conhecido como Cara Preta, assinou um contrato para investir R$ 3 milhões na incorporação. O contrato acabou sendo desfeito, de acordo com documentos do processo.
Gritzbach delatou suposta venda de uma laje no mesmo imóvel, por R$ 15 milhões, para o laranja de Cara Preta. O pagamento em dinheiro vivo teria ocorrido na sede da construtora. A Porte diz repudiar tais afirmações. Nos registros aos quais a reportagem conseguiu acesso não há, de fato, escritura que comprove a acusação.
Cara Preta foi assassinado num ataque a tiros em dezembro de 2021 no bairro. O motorista dele também foi morto. Gritzbach era suspeito de ser o mandante.
Distante cerca de 1,5 km do eixo da rua Platina fica o condomínio Figueira Altos do Tatuapé. Com 168 metros, é o residencial mais alto de São Paulo.
Um registro de venda anexado ao termo de delação mostra que a Porte comercializou por R$ 3,8 milhões um apartamento no 13º andar do prédio para a AHS Empreendimentos e Participações, cujo sócio administrador é Ahmed Hassan Saleh.
Conhecido como Mudi, ele é delatado como comprador de fachada de um apartamento no edifício Camille Claudel, também da Porte. O imóvel pertenceria ao também líder do PCC Silvio Luiz Ferreira, o Cebola.
A venda para Mudi, porém, não foi realizada pela construtora, mas pela pessoa que havia adquirido anteriormente a unidade. Ele aparece em diversos momentos do processo e, em um dos trechos, é mencionado como suspeito de ter oferecido R$ 3 milhões pela cabeça de Gritzbach.
A reportagem não conseguiu localizar as defesas de Mudi e Cebola.
Na mesma rua do Figueira, uma página de um contrato de venda aponta Mudi como comprador de um apartamento no condomínio Helen, onde há unidades com mais de 370 metros quadrados e seis vagas de garagem. A Porte, também dona do empreendimento, não reconhece o documento.
Nos anexos da delação de Gritzbach há também uma relação de débitos parcialmente quitados de outros cinco apartamentos entre o 3º e o 44º andares do residencial Figueira com valores em torno de R$ 5 milhões cada.
Não é possível dizer, com base nos documentos acessados, que as cinco unidades foram negociações para o PCC. Uma fonte que conduz investigações afirmou, no entanto, que todos os imóveis relacionados no processo foram usados para lavagem de dinheiro.
A Porte confirma a venda de apenas uma unidade no Figueira para a AHS Empreendimentos, destacando que os valores foram quitados em parcelas de 2016 a 2019 e que todos os pagamentos, feitos por meio de transações bancárias, foram declarados às autoridades. Reforçou ainda que não é acusada e que voluntariamente vem colaborando com as investigações. Além disso, diz estar aprimorando seus mecanismos de verificação da idoneidade de compradores.
Uma pessoa com acesso à diretoria da construtora disse que o ambiente na empresa é de preocupação com os danos de imagem provocados pelos crimes praticados por seu ex-funcionário.
A crise também faz pairar sobre o bairro a sensação de que o caso se torna mais midiático ao ser reforçado pelo preconceito sobre a origem do enriquecimento de moradores da zona leste, onde historicamente moravam os operários da industrialização paulistana, afirma Lucas Chiconi Balteiro, urbanista que tem o Tatuapé como objeto do seu mestrado.
"Aplica-se ao Tatuapé o estereótipo negativo construído sobre a zona leste", diz Balteiro.
Fundada há quase 40 anos, a Porte teve forte expansão nos anos 1990 ao elevar o padrão de moradias para atender a demanda de empreendedores, entre os quais donos de padarias, supermercados e indústrias, segundo Balteiro.
A despeito de a zona leste ser um reduto do PCC, é comum que o crime escolha mercados de luxo para lavar dinheiro, explica Raquel Scalcon, professora de direito penal da FGV.
Em geral, bens são comprados abaixo do preço de mercado e a diferença é paga de forma a dificultar o rastreamento, normalmente em espécie. Há, porém, situações em que a compra a preço de mercado em nome de terceiros pode servir apenas para camuflar o patrimônio de criminosos, prática que também entra na esteira da lavagem de dinheiro.
Comentários do Facebook