‘A chuva levou’: histórias de quem teve familiares e bens arrastados pelas tempestades em MG

‘A chuva levou’: histórias de quem teve familiares e bens arrastados pelas tempestades em MG
Matéria especial relata dor, tristeza, dificuldade e superação de quem vivenciou chuvas ‘devastadoras’ Foto: Da esquerda para a direita: CBMMG/Divulgação; Flávio Tavares/O Tempo; Reprodução/Redes Sociais; Reprodução Instagram @jheisoaresmartins; Douglas Magno/Arquivo O Tempo
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Relatos de dor, dificuldade e superação após chuvas ‘devastadoras’; 154 morreram em enchentes em cinco anos no Estado

O Tempo   Por Isabela Abalen, Juliana Siqueira, Mateus Pena e Raíssa Oliveira

 

Domingo, 24 de novembro. Às 1h25, socorristas do Corpo de Bombeiros resgataram o corpo de Jeniffer Soares Martins, de 28 anos, após ela ser arrastada por uma enxurrada durante um temporal em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. A mãe estava acordada pelo barulho da chuva e, por telefone, ouviu o genro chorar. "O coração estremece, a dor no peito aumenta. Eu levantei, chamei meu marido e, sem dizer uma palavra, fomos ver o corpo. Ninguém acredita que pode ser real", relembra a manicure Betânia Aparecida Martins, de 48 anos. A chuva levou Jhei, como a influencer era conhecida na internet, e deixou pais, marido, quatro irmãos e sobrinhas em luto.

“Ainda estamos processando. Lidando com a depressão, com a vontade de sumir. À meia-noite, todos os dias, minhas netas choram. É o horário que elas choram. Às vezes, gritando. Jeniffer sempre foi muito presente nas nossas vidas”, desabafa a mãe. Betânia afirma se apegar à fé para suportar a perda, mas reconhece que a dor é uma ferida aberta. "Nunca vai fechar", define.

O desafio do luto vivenciado pela família da influencer reflete o sofrimento compartilhado por dezenas de mineiros que, nos períodos chuvosos, veem a vida de seus entes queridos levada pelas águas. Desde o final de 2019, 154 pessoas morreram em ocorrências relacionadas às chuvas em Minas Gerais, conforme o monitoramento da Defesa Civil Estadual. 


Um dos casos marcantes ocorreu em 2018, quando mãe e filha, de 40 e 6 anos, morreram abraçadas na Vilarinho, em Belo Horizonte, enquanto uma adolescente de 16 foi sugada por uma galeria a poucos metros de distância. “Um tesouro nosso foi para água”, disse, chorando, o pai da estudante, Elias José Maria, à época. “Todo óbito é uma fatalidade, seja de um, dois ou três. A gente não quer que haja óbitos, mas fatalidades acontecem”, afirma o superintendente de Gestão do Risco de Desastre da Defesa Civil de Minas Gerais, major Cristiano Ferreira de Oliveira.


O período recente com maior número de óbitos foi de setembro de 2019 a março de 2020, quando Minas somou 73 mortes. Naquela época, os mineiros passaram por “eventos climáticos extremos”, como a “chuva de mil anos” que atingiu BH — nome dado ao fenômeno que devastou a cidade em 20 de janeiro de 2020. De lá para cá, o número de mortes reduziu, sendo que no último período (2023/24), foram seis óbitos, uma queda de 91% em comparação com a estação mais fatal dos últimos anos. Em contrapartida, as ocorrências relacionadas aos temporais, atendidas pelo Corpo de Bombeiros, cresceram de 22.807 em 2019/20 para 23.894 em 2023 até março de 2024. 

Engenheiro com atuação em perícias de engenharia, Clémenceau Chiabi afirma que, apesar de muitas obras e ações terem sido positivas nos últimos anos, a guerra contra os graves efeitos das chuvas ainda não terminou. Conforme ele explica, nenhuma obra é permanente e não é possível acabar com os alagamentos para sempre. Além disso, as próprias mudanças climáticas também são um desafio que veio para ficar. “As mudanças do clima são notórias. Temos percebido características de chuvas diferentes em Belo Horizonte e no Estado, mais intensas, com volume maior em menos tempo. A realidade tem mudado, e isso pede mudanças na forma como lidamos com as tempestades também”, avalia.

A morte de Jhei é a única oficialmente registrada desde setembro de 2024, quando se iniciou o atual período chuvoso. No entanto, outro caso semelhante ocorreu no dia 3 de dezembro, quando um idoso de 86 anos foi arrastado por uma correnteza e perdeu a vida durante as chuvas em Porteirinha, no Norte de Minas. A mãe da influencer, Betânia Martins, ingressou com um processo contra o município de Uberlândia, alegando danos morais pela tragédia.

Segundo ela, as placas de sinalização na avenida Rondon Pacheco, local onde ocorreu a enxurrada, não estavam funcionando durante o temporal. Além disso, Betânia acredita que a via poderia ter sido melhor planejada para prevenir inundações. "Tem que ser feito alguma coisa naquele ponto. Eu estou falando de vidas. Existe o imprevisto do volume de água, mas é possível melhorar a segurança. Minha filha tinha medo de chuva, meu genro é supercuidadoso no trânsito. Isso é muito triste", lamenta.

A reportagem solicitou um posicionamento da prefeitura de Uberlândia, mas, até o fechamento da matéria, não houve resposta.

Por dia, mais de 100 danos causados pela chuva no Estado

Este ano, só nos meses de outubro e novembro, Minas Gerais somou uma média de 102 ocorrências diárias por causa das chuvas, conforme dados preliminares do Corpo de Bombeiros. Para se ter ideia, a corporação recebeu, por hora, quatro ligações pedindo socorro. O cenário liga o alerta para o aumento das ocorrências com a intensificação das chuvas em dezembro e janeiro. “Tivemos eventos climáticos extremos em relação àquilo que já estamos acostumados. Enfrentamos uma estiagem prolongada [de abril à setembro], então a expectativa é de chuvas mais intensas também. Por isso, a Defesa Civil fez uma preparação. A gente trabalha com diagnósticos diários do serviço de meteorologia. A previsão é que as chuvas sejam mais intensas em dezembro e janeiro”, alerta o major Cristiano Ferreira de Oliveira.

Na avaliação dele, que é superintendente da Defesa Civil, as mortes causadas por temporais estão diretamente relacionadas aos eventos climáticos e ao cenário que aconteceram. Ele pontua, contudo, que a diminuição das mortes nos últimos anos está associada a maior divulgação de ações preventivas. “Nós acreditamos essa redução do número de mortes às ações preparatórias e treinamento, além do maior preparo das população para enfrentar cenários de risco. As pessoas estão mais informadas e tomando mais cuidado. É preciso sempre que as pessoas aumentem a percepção de risco para adotar medidas de autoproteção”, avalia. 

Mas não são só as perdas humanas que podem ser evitadas com ações preventivas. Se o alerta extremo da Defesa Civil, recém-testado em Belo Horizonte, existisse há quatro anos atrás, poderia ter poupado o pintor Luis Antônio, de 36 anos, de viver um dos maiores traumas da sua vida. Em 2020, ele assistiu à chuva levar boa parte das conquistas dele ao longo dos anos, quando morava em Sabará, na região metropolitana de Belo Horizonte, e uma tempestade atingiu a cidade. Ele e a companheira na época conseguiram sair da residência e deixaram tudo para trás, sem imaginar que o imóvel ficaria todo alagado.

“A chuva estava forte, mas não imaginamos que chegaria a esse ponto. No fim, perdemos tudo, inclusive lembranças de anos. É uma coisa terrível, porque você tem que recomeçar sem algumas das memórias mais importantes da sua vida”, diz ele. Depois do que aconteceu, Luis resolveu se mudar para Belo Horizonte e alugou uma casa mais segura. Ele recuperou móveis e diversos outros bens materiais, mas afirma que não se esquece das coisas de valor sentimental. “A água levou tudo, e parte do meu passado está faltando um pedaço agora”, desabafa.


Temporal que arrastou ‘Feirinha do bairro Amazonas’, em 2020, levou também uma tradição de 60 anos em Contagem

“Foi um trauma muito grande. Muito doloroso ver os meus parceiros de trabalho passando por uma situação muito difícil. Foi uma chuva repentina, de mais ou menos uns 20 minutos”. Aquela tarde de 19 de janeiro de 2020 — um domingo —, mudou a vida de Ana Maria de Carvalho Souza, de 67 anos. Há 50, ela é montadora de barracas na Feirinha do bairro Amazonas, no Parque Industrial, em Contagem. O temporal arrastou pessoas, barracas, carros e produtos na avenida Alvarenga Peixoto, no Amazonas. As imagens registradas são impressionantes, e as marcas ainda persistem na memória de Ana Maria.

 

De fato, segundo o psicólogo Thales Coutinho, uma das principais dificuldades de quem é vítima de desastres naturais é recomeçar após as perdas. O ato de reconstruir, como ele explica, requer níveis de resiliência muito além do comum. “Tudo depende do suporte dessas pessoas atingidas, a nível financeiro e social, e, nesses casos, costumamos falar de situação de vulnerabilidade. O trauma, então, envolve a necessidade de reconstrução, envolve ter que superar memórias que não vão voltar, seja da casa alagada, dos produtos perdidos, ou, no pior dos cenários, de ter que enterrar parentes”, avalia.

A superação é também um desafio para quem perdeu o “ganha pão” em um temporal. Após o alagamento em Contagem, na região metropolitana, a Feirinha do bairro Amazonas, que de 64 anos de história ficou 60 na Alvarenga Peixoto, migrou para a rua Tiradentes, que fica um pouco acima do local antigo. Ana Maria afirma que, após a mudança, o evento ficou desorganizado e o comércio da região, prejudicado. “Existem muitas reclamações de expositores que não querem ficar lá. A maioria está insatisfeita. Nós não temos segurança, nós temos proteção e apoio de ninguém, nem dos órgãos públicos. Se houver um roubo ou uma briga, ou se uma pessoa passar mal, não temos a quem recorrer”, reclamou.


A idosa se apega à fé em Deus e ainda sonha com o retorno da Feirinha para a Avenida Alvarenga Peixoto. Ela sugere uma interlocução entre os expositores da feira e a Prefeitura de Contagem. “O nosso bairro Amazonas parece um cemitério aos domingos. Tenho fé em Deus que um dia a Feirinha voltará para o seu lugar tradicional. Precisamos de uma resposta da Prefeitura de Contagem. Fico sentida não ter retorno de ninguém. A Feirinha do Bairro Amazonas é um patrimônio histórico para nós. Minha vida e história estão guardadas aqui”, pontuou Ana Maria. 

  • LIVRAMENTO. Ivanilsa da Silva Barros, 50 anos, é vendedora de verduras e frutas na Feirinha do bairro Amazonas há oito anos. Ao perceber a chuva se formando e os primeiros pingos, ela desmontou a barraca e foi embora. “As barracas que estavam do nosso lado foram embora com a chuva. Sentimento de tristeza para os comerciantes que perderam seus pertences, e livramento por aqueles que conseguiram se salvar”, disse.

Em nota, a Regional Industrial da Prefeitura de Contagem informou que não há previsão para o retorno da feira do bairro Amazonas à avenida Alvarenga Peixoto. Após uma consulta aos feirantes, foi constatado que a maioria demonstra preferência pela localização atual, na rua Tiradentes. Além disso, na avenida Alvarenga Peixoto, está em andamento uma obra de macrodrenagem, promovida pelo governo do Estado, visando diminuir os riscos de inundações.

“Esclarecemos, ainda, que mantemos um diálogo constante com os expositores e feirantes da feira do Bairro Amazonas, buscando oferecer todo o suporte necessário para o desenvolvimento de suas atividades. Já a segurança da feira do Bairro Amazonas, na rua Tiradentes, é uma prioridade e a Guarda Civil de Contagem realiza rondas e ações preventivas no local, em parceria com a Polícia Militar”, afirmou o órgão. Sobre a questão da segurança dos feirantes, a reportagem demandou um posicionamento da Polícia Militar. Até o fechamento desta matéria, a corporação não havia se manifestado.


Do trauma ao ‘medo da chuva’ 

Tornar-se vítima de um fenômeno natural, como as chuvas, pode gerar um medo prolongado de tudo o que se associa ao momento do desastre: o céu escurecendo com as nuvens, a água subindo de nível no asfalto ou trincas nas paredes de casa. Trata-se de uma reação de proteção do corpo, como explica o psicólogo Thales Coutinho. “A razão pela qual temos traumas é que, inevitavelmente, eles causam um aprendizado, transformam-se em uma reação, ativam um instinto de alerta e proteção. Como as tragédias não são esquecidas, ao primeiro sinal de chuva, a vítima se recorda do ocorrido e entra em estado de perigo. É isso que chamamos de medo”, afirma.

Segundo Coutinho, algo que pode fazer diferença na recuperação do trauma entre as vítimas dos temporais são sessões de psicologia comunitária, focadas em emergências e desastres. “Essas seriam intervenções em grupo, nas quais as vítimas descobrem, juntas, formas de viver apesar das perdas”, acrescenta.

Contenção de enchentes é trabalho contínuo, analisa especialista

O engenheiro Clémenceau Chiabi pondera que, em Belo Horizonte e na região metropolitana, as bacias de contenção e o incentivo para o amortecimento de água dentro das casas, com caixas de captação, são algumas das opções que têm bons resultados no enfrentamento a tragédias causadas pelas chuvas. Mesmo assim, segundo ele, o próprio crescimento das cidades traz novos desafios. “Toda vez que se constroi algo, é retirada uma área verde, e a água tende a escoar para as partes mais baixas. Imagina o que é a água passar pelo mato e o que é passar por uma rua asfaltada! Então, há a necessidade de um ajuste de sistemas de drenagem urbanos constantemente”, destaca Chiabi. 

O especialista lembra, por exemplo, que quando uma área verde se transforma em um bairro, é preciso ter toda uma análise em relação à chuva. É necessário verificar as áreas do entorno, os escoamentos de água e calcular os dispositivos de drenagem, como sarjetas e bocas de lobo. “É preciso ver o quanto de água o lugar vai comportar e atualizar os modelos matemáticos de acordo com o tipo de chuva atual. É possível prever com tranquilidade potenciais pontos de alagamento e fazer ações preventivas”, afirma.

Chiabi ressalta que a cidade é viva, não estática, e, por isso, a relação de obras para contenção de enchentes precisa ser permanente. “As áreas afetadas pela chuva mudam. Há muitos anos umas [áreas] eram mais atingidas, atualmente já são outras. Por isso, devem ser feitos trabalhos contínuos. Não existe uma regra. Daqui a cinco anos pode estar tudo diferente. Muitos estudos já estão obsoletos. O desafio é antever problemas futuros e fazer planos de médio e longo prazo. A engenharia é capaz de fazer essas previsões”, afirma.

  • Desabrigados: desde 20 de setembro, mais de 400 pessoas precisaram deixar suas casas após serem atingidas por chuvas intensas, temporais, vendavais e enchentes. Do total, 323 estão desalojadas — pessoas que desocuparam seus domicílios temporariamente, mas que se deslocam para casa de parentes ou amigos — e 145 estão desabrigadas, ou seja, perderam suas casas e necessitam de abrigo público.
     
  • Situação de Emergência: Até o momento, 21 municípios mineiros decretaram situação de emergência por chuvas — quando o município é incapaz de restabelecer a normalidade sozinho, necessitando de intervenção do Estado e da União como apoio complementar. Através do decreto, a cidade consegue, ainda que parcialmente, restabelecer sua normalidade. De modo geral é feito o pedido de reconhecimento estadual e/ou federal com o intuito de buscar auxílio daqueles entes federados.

    Segundo a Defesa Civil, o reconhecimento permite acesso a ajuda humanitária, envio de equipes de resposta e solicitação de recursos financeiros da União para reconstrução de pequenas obras e aquisição de materiais de assistência. No caso do período chuvoso, a Defesa Civil atua em articulação com órgãos e entidades para organizar ações de resposta, restabelecer a normalidade e distribuir materiais de ajuda humanitária, entre outros.
     
  • Investimentos e Ações Estruturantes: Para minimizar os impactos das chuvas, nos últimos três anos, segundo a Defesa Civil, mais de R$ 94 milhões foram destinados à estruturação das defesas civis municipais, com a entrega de 513 kits de viaturas, equipamentos e materiais de prevenção, beneficiando 494 municípios mineiros. A Escola de Defesa Civil também capacitou mais de 5.000 pessoas entre 2023 e 2024 em temas como prevenção, resposta e reconstrução.

    Além disso, o Plano de Ação Climática (Plac) direciona medidas para enfrentar as mudanças climáticas, com ações como mapeamento de áreas de risco e aprimoramento do monitoramento tecnológico.

    Com o objetivo de coordenar esforços e otimizar as respostas aos problemas causados pelas chuvas, foi criado ainda o Comitê Integrado para o Período Chuvoso, que reúne representantes de todas as secretarias do governo estadual. A criação do comitê visa promover uma atuação integrada entre os órgãos, fortalecendo a resposta e a recuperação das áreas afetadas, além de otimizar os recursos disponíveis durante o período chuvoso.

Veja o número de mortes por chuvas registradas em Minas nos últimos períodos chuvosos

  • 2019/20 - 73 óbitos
  • 2020/21 - 22 óbitos
  • 2021/22 - 30 óbitos
  • 2022/23 - 22 óbitos
  • 2023/24 - 6 óbitos
  • 2024/25 - 1 óbito