Enem 2024: quase 500 detentos fizeram a prova em Juiz de Fora

Enem 2024: quase 500 detentos fizeram a prova em Juiz de Fora
(Foto: Presídio de Bicas, anexo inaugurado neste ano)
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Aplicação da prova para detentos aconteceu depois de Enem regular, nível de dificuldade é o mesmo; especialista chama atenção para a importância do acesso a educação para o combate a criminalidade e os debates acerca da ressocialização

Por Pâmela Costa Tribuna de Minas 

Aos 18 anos, Gerisson, um jovem preto, com ensino médio incompleto e sem familiares, foi preso. “Minha vida era sem objetivo nenhum, sem expectativa nenhuma e parecia que todo dia era o último.” Isso era o que ele pensava, até que o dia seguinte veio e ele foi preso após realizar um assalto.  Ao longo dos anos encarcerado, estudou, ingressou no ensino superior e, hoje, cumprindo regime aberto, conseguiu emprego de carteira assinada. Uma realidade que tem sido procurada pelos outros 481 presos do Departamento Penitenciário e dez do Sistema Socioeducativo da 4ª Região Integrada de Segurança Pública (RISP) Juiz de Fora que, somente neste ano, realizaram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), conforme dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp).

O Enem aos indivíduos privados de liberdade é similar ao exame regular. Exceto pela data. Em 2024, enquanto a prova ocorreu no início de novembro em todo país, aos detentos ela foi aplicada na segunda semana de dezembro. O nível de dificuldade se mantém o mesmo, e as questões permanecem sendo desenvolvidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Para o vice-diretor do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, Wagner Batella, o acesso a educação aos indivíduos presos fomenta a discussão que o enfrentamento à criminalidade não pode ser entendido apenas pela via da repreensão. “É importante avançar para uma compreensão mais abrangente no que se refere à segurança pública, incluindo frentes como emprego, habitação, apropriação dos espaços públicos e educação”, ele indica.

Acesso a educação como instrumento contra a criminalidade

Gerisson, hoje com 26 anos, nunca conheceu sua mãe ou pai. Criado em orfanatos, dos quais eventualmente fugia, aos 16 anos conseguiu ser emancipado e abandonou o ensino médio, ainda no primeiro ano. Depois, passou a sobreviver com a renda gerada por eventuais assaltos. Quando foi preso, retornou aos estudos, em um ambiente que muito se distanciava de uma escola ou universidade.

“Dentro do sistema carcerário acontecem muitas ilegalidades, o conhecimento por meio da faculdade me ajudou a pedir ajuda por meio de ofícios, requerimentos e a denunciar”, explica Gerisson, ex-detento. Segundo os dados abertos da Sejusp, em 2024, a população carcerária da cidade, entre analfabetos ou semi-analfabetos, chegou ao montante de 1034 pessoas (homens e mulheres). Já nos casos de indivíduos que possuem ensino superior completo ou incompleto, o número cai para 314.

Para Gerisson, o estudo permitiu que ele vislumbrasse uma amplitude do mundo que antes não via. Noções que, a princípio, poderiam parecer comuns, mas que na realidade de muitos ainda não são, como ler e compreender documentos antes de assinar, bem como ter noções dos seus próprios direitos e deveres como cidadão e suas garantias constitucionais.

Lá dentro, ele conta ter testemunhado ações irregulares – que não serão citadas na matéria a fim de evitar retaliações, – mas que podem ser figuradas por meio da fala de Gerisson. “Se eu tivesse continuado lá, provavelmente teria perdido a bolsa e evidentemente não estaria mais fazendo faculdade”, pontua. Em um dos muitos dias em que estudava, levou a chamada “falta grave”, que é um procedimento administrativo punível na cadeia por não ter conseguido devolver um dicionário a tempo para a biblioteca carcerária. 

“A verdade é que o sistema não está pronto. Não tem lugar para quem faz faculdade lá dentro”, conta Gerisson, sobre todo o processo para estar preparado para o Enem também ter sido um desafio. Ele relata que o apoio da cozinheira de um dos orfanatos em que morou foi fundamental.  Durante as saídas temporárias que teve direito, ela permitiu que ele ficasse em sua casa, deu comida e abrigo, o que possibilitou que Gerisson continuasse a estudar.

Uma das principais dimensões para o enfrentamento da violência é garantir o acesso a educação, seja para retirar pessoas de situação de risco ou evitar que elas se insiram neste contexto. Conforme observou o professor Batella. “A educação oferece perspectivas para o desenvolvimento do indivíduo, por meio de um ambiente de crescimento pessoal e profissional, a escola; por meio da educação há, ainda, a possibilidade de maiores oportunidades para os indivíduos.” No caso de Gerisson, o acesso a educação superior o levou a enxergar outros caminhos para sua vida.

O discurso da ressocialização de detentos

Faz parte da Política de Acessibilidade e Inclusão do Inep a aplicação anual do Enem a detentos. Segundo a página do Governo federal, a prerrogativa é “acreditar na educação como elemento transformador, inclusive para a redução da reincidência criminal e da exclusão social”. Contudo, para falar sobre ressocialização dos indivíduos privados de liberdade é necessário passar também pelas condições do sistema carcerário brasileiro, neste caso, o de Juiz de Fora.

Ao longo deste ano, diversas denúncias de truculências foram levadas a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – Juiz de Fora. Outros casos já se somam também nos arquivos do Ministério Público. A Tribuna teve acesso a esses documentos que tratam de violações como falta de atendimento médicocomidas azedas, com insetos, e também supostas violências físicas.  

 A reportagem levou esse questionamento ao pesquisador Batella, a fim de compreender como abordar o caráter da ressocialização – reintegrar os indivíduos à sociedade após o cumprimento de sentença – em meio a essas condições. Para o professor, o diagnóstico de precariedade, de maneira geral, se distancia para medidas efetivas de ressocialização dos presos. “Os desafios são amplos e chocam por se tratar de questões que vão desde aspectos básicos, como condições adequadas para alimentação e higiene dessas pessoas, que estão sob a tutela do Estado, até a escassez de políticas para reabilitação e reintegração, presenças de facções criminosas nos presídios e dificuldades para educação/qualificação profissional desses presos. Essas e outras barreiras tornam o sistema prisional pouco efetivo”, avalia.

 

Carente de mais políticas públicas, a ressocialização na sociedade é um pilar que, por vezes, norteia os detentos – que após o encarceramento procuram uma chance -, no caso, a educação além de uma oportunidade é também um direito. “A educação é uma das principais dimensões para se pensar a ressocialização das pessoas privadas de liberdade, pois permite a capacidade dessas pessoas projetarem suas vidas e vislumbrarem perspectivas, ensejando autonomia e reflexão. Além de a educação oferecer condições para melhores alternativas futuras, há a possibilidade de novas perspectivas de vida, seja por meio da instrução escolar ou por meio da formação profissional”, frisou Batella, que destaca também a importância da permanência nesses espaços.

Como é o caso de Gerisson, que atualmente trabalha de carteira assinada e divide o aluguel de uma casa pequena com um amigo. “Eu estou na minha melhor fase, ter pessoas que acreditam em você ajuda muito. A minha vida agora é estudar e trabalhar.” Ele complementa que, na prisão, o foco é um dos instrumentos para não desistir dos estudos – mesmo com todo o cenário te impulsionando em outra direção. Lá, segundo ele, ressocialização é tratada com descaso, mas há diversas pessoas que querem para si outra vida.