Passageiro flagra motorista apostando no ‘jogo do tigrinho’ ao volante, em BH
Para além do risco de acidente, situação também escancara o problema do vício em apostas, cada vez mais comum em Minas e no Brasil
O Tempo Por Aline Diniz e José Vítor Camilo
Na porta de casa, na fila do banco, esperando no ponto e dentro do transporte público. Ver pessoas com os celulares na mão apostando – e, quase sempre, perdendo – no chamado “Jogo do Tigrinho” já faz parte do cenário urbano cotidiano. Porém, na última terça-feira (3 de dezembro), um passageiro de um ônibus de Belo Horizonte foi surpreendido com a seguinte situação: o motorista de um coletivo fazendo apostas enquanto dirigia. A cena, conforme especialistas, expõe o vício em jogos de azar – um problema de saúde pública que vem se agravando no Brasil. Em nota, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) afirmou que "a Sumob (Superintendência de Mobilidade do Município de Belo Horizonte) encaminhou ao Setra (Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Belo Horizonte) o pedido de fornecimento das imagens do veículo no dia e horário apontados para que se possa esclarecer o alegado comportamento inadequado do motorista". (Leia a nota na íntegra abaixo)
A situação foi flagrada em foto pelo arte-educador Pedro Cindio, de 39 anos, por volta das 16h30 (início do horário de pico), quando ele estava no interior da linha 8102 (União-Carmo/Sion). A foto foi tirada no momento em que o veículo, com dezenas de passageiros, passava pela avenida Nossa Senhora do Carmo, uma das mais movimentadas da capital mineira.
“Eu estava voltando da escola onde trabalho com crianças. Peguei o ônibus que parava relativamente perto de casa e, como ia pegar a integração, fiquei um pouco na frente. Estava sentado naquele primeiro banco, do lado da escada, e percebi que o celular do motorista estava no painel, no meio do volante. Até aí, tudo bem, nada demais; poderia ser um motorista novo que estava vendo o trajeto. Mas reparei que toda hora ele apertava algo no celular e, quando fui ver, ele estava jogando no tigrinho”, relembra o passageiro.
“Primeiro, fiquei preocupado com a segurança dos passageiros. Mas, em seguida, comecei a imaginar o desespero do motorista para ficar apelando para um jogo assim. Direto eu vejo passageiros jogando no ônibus e conheço casos de pessoas que se afundaram com isso. Tive colegas de profissão que perderam muita coisa por causa desse jogo também. É complicado, está virando uma epidemia. Rola uma lavagem cerebral muito grande para convencer a galera a depositar dinheiro”, lamenta Cindio.
A psiquiatra Julia Machado Khoury, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que também é mestre e doutora em dependências tecnológicas pela instituição, explica que o vício em jogos de azar se assemelha à dependência em drogas.
“Toda vez que a pessoa viciada aposta, é liberada dopamina, que é o hormônio do prazer, no sistema de recompensa do cérebro. Isso gera uma sensação de alívio ou de prazer, o que estimula a recorrência do comportamento. Além disso, a dopamina também é liberada no córtex pré-frontal, que é a região do nosso cérebro que inibe os nossos impulsos, nossos instintos, e que faz com que a gente consiga adiar recompensas. Com isso, a dopamina diminui essa função, fazendo com que a pessoa viciada fique mais impulsiva e com mais dificuldade de controlar o comportamento”, detalha a profissional.
A partir daí, a pessoa viciada passa a prejudicar ou adiar outras atividades em prol do jogo, podendo, inclusive, ter sintomas de abstinência, ficando irritada, ansiosa ou triste quando não está jogando. “Ela (a pessoa viciada) volta a se sentir bem na hora que joga e, com isso, perde o controle. Então, a pessoa começa a jogar e não consegue parar. Fala que vai apostar uma quantia e acaba apostando mais, sempre em busca de recuperar o que perdeu. E isso gera uma prisão mesmo. A pessoa fica tão impulsiva, sente um alívio tão grande quando joga, que faz com que negligencie os aspectos negativos e desconsidere até mesmo os riscos para ela e para os outros, colocando o prazer acima de tudo”, explica Julia.
Aumento na busca por ajuda
A psiquiatra afirma que tem aumentado o número de pessoas que procuram tratamento para o vício em jogos eletrônicos e de apostas. “Vejo que existe uma pressão também, da sociedade, para responsabilizar influenciadores que têm estimulado esse tipo de comportamento e, até mesmo, questionar a legalidade desses jogos. Como a lei ainda permite estas apostas? A sensação que dá é que é uma brincadeira, que não vai trazer prejuízo, o que faz com que aumente esse comportamento, principalmente entre os jovens”, alerta.
Na última segunda-feira (2 de dezembro), foi preso pela Polícia Civil mineira um casal de influenciadores que lucrava R$ 100 mil por mês por envolvimento com o “jogo do tigrinho”. O homem, de 26 anos, e a mulher, de 28, foram presos em um condomínio de luxo na cidade de Esmeraldas, na região metropolitana de Belo Horizonte.
Conforme o delegado e chefe da Divisão de Fraudes do Departamento de Corrupção da instituição, Magno Machado, os influenciadores recebiam cerca de R$ 30 a cada “seguidor” que se cadastrasse na plataforma com a utilização do link e da senha divulgados por eles em suas redes sociais.
A psiquiatra Julia Machado Khoury aconselha que, em caso de vício, o primeiro passo é buscar ajuda de um psiquiatra ou psicólogo, que são os profissionais capacitados para fazer o diagnóstico. “É preciso também identificar as comorbidades que podem estar causando esse vício, como, por exemplo, depressão, TDAH, ansiedade ou algum transtorno de controle de impulso. O vício sempre está associado a outras doenças psiquiátricas ou situações da vida da pessoa”, pondera.
Além da terapia, essencial nestes casos, também existem medicamentos que podem ser prescritos e que reduzem a impulsividade, diminuindo o prazer que o jogo causa ou aliviando os sintomas da abstinência, sendo indicados como “auxílio” no tratamento.
Desatenção causa quase metade dos acidentes de trânsito em MG
Com 121.199 acidentes de trânsito que tiveram como causa a falta de atenção, até o dia 3 de dezembro, Minas Gerais registrou uma média de 356 destes acidentes por dia, ou 15 por hora. O número representa 48,9% do total de acidentes automotivos registrados até agora no Estado (247.574). Os números são da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp).
O especialista em trânsito Silvestre Puty Andrade considera que a desatenção causada pelo uso do celular é uma das causas mais proeminentes nas estatísticas. “O celular tem ampliado suas funções e possibilidades, e as alternativas de bets estão cada vez mais diversificadas”, explica. Além disso, a fiscalização do uso de celular por condutores não pode ser feita por radares, por exemplo. “No caso dos transportes coletivos, a situação é ainda mais complicada, já que o motorista transporta passageiros”, diz.
Uma saída para mitigar o problema seria o endurecimento da fiscalização, com mais agentes atentos e multando os condutores, conforme ressalta Silvestre. “A presença de agentes estratégicos e a divulgação das ações são fundamentais. O receio da fiscalização já pode reduzir o uso do celular”, explica. Segundo o especialista, campanhas de divulgação das ações de fiscalização, como as realizadas em blitze da Lei Seca, são essenciais.
“O Estado não precisa informar os locais exatos, mas deve mostrar que a infração está sendo combatida com rigor. A instalação de câmeras em ônibus também pode contribuir. Essas câmeras não apenas monitoram a conduta do motorista, mas também poderiam fornecer provas em casos de violência”, conclui Silvestre.
O que diz a PBH
A Prefeitura de Belo Horizonte informa que a Sumob encaminhou ao Setra o pedido de fornecimento das imagens do veículo no dia e horário apontados para que se possa esclarecer o alegado comportamento inadequado do motorista.
Cabe ressaltar que, ao conduzir o veículo, o motorista deve manter a atenção exclusiva na direção, zelando não apenas pela sua segurança e de todos os passageiros.
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