Novembro Azul abre espaço para reflexão sobre a dificuldade masculina em procurar terapia

Novembro Azul abre espaço para reflexão sobre a dificuldade masculina em procurar terapia
Novembro Azul abre espaço para reflexão sobre a dificuldade masculina em procurar terapia Foto: iStockphoto/Divulgação
Receba as notícias do MCM Notícias MG no Whatsapp
Receba as notícias do MCM Notícias MG no Whatsapp
Receba as notícias do MCM Notícias MG no Whatsapp

Tradicionalmente dedicada à prevenção do câncer de próstata, campanha de conscientização discute os motivos para a recusa de ajuda

O Tempo   Por Raphael Vidigal Aroeira

 

A fala do vidraceiro Marcelo Washington, de 27 anos, é ilustrativa sobre a conhecida dificuldade dos homens em procurarem ajuda quando o assunto é saúde mental. “Sou tranquilo, creio que não tem necessidade de chegar nessa situação de terapia”, declara Marcelo. Com uma única exceção, os demais entrevistados parecem seguir na mesma linha. 

Aposentado, Heraldo Filho, de 66 anos, prefere “fazer academia e viajar” para contornar eventuais problemas de estresse. A receita do motorista Célio Silva, de 75 anos, é se “alimentar, dormir bem e trabalhar em paz”. Aos 28 anos, o empreendedor Célio Ferreira fia-se na leitura de livros do psiquiatra Augusto Cury para professar a sua mensagem: “Aproveite cada momento, abrace as pessoas, ame mais, abra o coração”.

Apenas o empresário Maximiliano Ribeiro, de 50 anos, admite que, há duas décadas, recorreu à terapia. “Enfrentei um momento difícil e precisei dar uma equilibrada. Recomendo a terapia e muito, porque é uma coisa que ajuda demais. Graças a ela, minha saúde mental hoje está no lugar”, celebra. 

A pressão do mundo corporativo foi o gatilho para o quadro de estafa emocional vivenciado por Maximiliano. Recentemente, o B-20, braço empresarial ligado ao G-20, grupo dos vinte países com as maiores economias do mundo, do qual o Brasil é parte, definiu a saúde mental como uma de suas prioridades, devido ao “aumento dos casos relacionados ao assédio no trabalho”.

A psicóloga Mirvanie Gonzaga conta que ao homem foi reservado culturalmente, nas sociedades ocidentais, “o papel de provedor, másculo, que não chora”, o que teria desembocado na dificuldade de expor as próprias emoções e lidar com o fracasso e a frustração. “O papel do homem nesse contexto da saúde mental é do calar e não do falar”, explana Mirvanie, aludindo à conhecidíssima figura do “homem fechado em si mesmo que pensa que precisa dar conta de tudo sozinho”. 

Também psicóloga, Luciana Passeado acrescenta que, “por conta dessas barreiras socioculturais, os homens buscam menos ajuda profissional para seus problemas pessoais e de saúde do que as mulheres, e menos ainda com mais de 45 anos”. “Eles costumam chegar aos consultórios médicos e psicológicos geralmente por influência da mulher e dos filhos, depois de adiarem o quanto podem, já com a doença em estágio avançado”, completa.

Tabus

Luciana avalia que “essa negligência com o autocuidado pode ser compreendida pelos tabus e preconceitos reproduzidos pela chamada masculinidade tóxica”. “Ela funciona como uma espécie de defesa contra a angústia, o medo e a vergonha de parecer fraco, impotente e incapaz de resolver seus próprios problemas. Assim, a autossuficiência nega qualquer vulnerabilidade que possa colocar em xeque os atributos de força, independência e coragem, fazendo com que os homens se exponham mais a riscos e se envolvam em acidentes de trânsito, que, junto à violência, são as principais causas de morte prematura nessa população”, salienta a especialista.

Mirvanie corrobora a análise. Segundo ela, “a morte autoprovocada é quatro vezes maior entre homens”, cujas queixas frequentes incluem ansiedade, estresse, questões financeiras e problemas de relacionamento. A saída mais frequente é o uso abusivo de bebidas alcoólicas, que pode se configurar em um vício e apenas piorar o estado das coisas. 

“Muitas vezes, o homem foi treinado para responder prontamente às questões e, quando ele não sabe, tende a iniciar um ciclo de alcoolismo. Ele precisa entender que o consultório terapêutico não é um lugar de julgamento, mas de acolhimento”, sustenta Mirvanie, que conta que, até outro dia, era comum os homens que iam à terapia solicitarem horários noturnos, para “não serem vistos por ninguém naquele local”. Tanto ela quanto Luciana acreditam que é preciso “desconstruir essa sociedade”.

“A saúde mental ainda é muito estigmatizada, principalmente entre os homens, já que, tradicionalmente, vincula-se a masculinidade à razão, objetividade e ao pragmatismo, enquanto os sentimentos, as emoções e a loucura estão vinculadas ao universo feminino”, compara Luciana. 

Ela acredita que “ações psicoeducativas que ajudem os homens a reconhecer os efeitos das responsabilidades familiares, frustrações financeiras e problemas no trabalho, além de outros fatores, em sua vida emocional podem prevenir o estresse e o adoecimento mental”. “A saúde mental é tão importante quanto a saúde física, e pode, inclusive, impactá-la”, sublinha a psicóloga, que lança mão de outra “pertinente provocação”, para explicitar, ainda mais, o seu ponto de vista. 

Mudança

“Costumo dizer que ninguém com uma fratura no pé procuraria um cardiologista, mas quando se trata de ansiedade, depressão, pânico, fobias, taquicardia, insônia, por que relutamos tanto em procurar um psicólogo ou psiquiatra, chegando à automedicação para solucioná-los, em vez de começarmos um tratamento com profissional especializado?”, indaga Luciana. 

Mirvanie aponta que o patriarcado atinge todos indistintamente, chegando também às mulheres, que assimilam “um certo temor de que os filhos tenham comportamentos considerados femininos”. “Precisamos ensinar os homens a se abrirem, falarem sobre os sentimentos. Como dizia o (psicanalista e escritor mineiro) Rubem Alves, o mundo precisa de pessoas que escutem sem invalidar, sem matar a emoção do outro”, arremata a psicóloga. 

Transtornos têm aumentado entre homens

A psicóloga Luciana Passeado conta que o perfil das doenças mais comuns entre os homens vem se modificando ao longo do tempo. “Hoje, os casos de transtornos alimentares, como anorexia, bulimia e compulsão alimentar têm aumentado também entre os homens. As redes sociais com seus filtros em busca de uma imagem corporal perfeita e alto nível de exposição estão também por trás desse fenômeno. Os ideais narcisistas de perfeição, ditados pela lógica liberal dos excessos de nosso modelo econômico capitalista e seus modos de vida, não estão cumprindo suas promessas de saúde e felicidade”, aponta a especialista. 

De acordo com Luciana, “a velha fórmula do ideal de homem viril, rico e bem-sucedido profissionalmente, ‘exalando testosterona’” tem levado a muitos quadros de sofrimento emocional e cobrado seu preço em um mundo repleto de aparências equivocadas. Ela aproveita para ressaltar “a importância das políticas preventivas de saúde direcionadas ao público masculino em seus contextos socioculturais e econômicos, que levem em conta o seu perfil de morbidade e estimulem a realização de campanhas de conscientização, como o Novembro Azul”. 

A campanha que começou falando sobre prevenção do câncer de próstata atualmente aborda “as principais doenças que acometem os homens, como o diabetes mellitus, as doenças cardiovasculares, e outras condições, como andropausa, disfunção erétil, ejaculação precoce e infecções sexualmente transmissíveis”, enumera a entrevistada, para quem uma solução mais eficiente desse cenário geral é trocar o conceito de independência por solidariedade. 

“Todos e todas nós, em qualquer momento de nossas vidas, podemos adoecer e o ato de cuidar é essencialmente humano, independentemente do sexo ou gênero com o qual nos identificamos. Sem o cuidado de outro humano, nenhum de nós foi capaz de sobreviver nos primeiros anos de nossa infância, nem ao final de nossos dias tampouco seremos, sem ampliarmos a consciência, superando os limites de gênero impostos para atuação das mulheres no espaço privado de cuidado e dos homens no espaço público político”, finaliza Luciana.