MG: investigações de neonazismo cresceram 900% nos últimos 4 anos, e jovens são alvos fáceis
Escalada de casos nacionais motiva missões do Ministério dos Direitos Humanos; casos extremos costumam acontecer em escolas e faculdades
O Tempo Por Isabela Abalen
O crime de neonazismo motivou um aumento de 900% nas investigações da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG) em um período de quatro anos. A instituição abriu 10 inquéritos para apurar suspeitos de fabricar, comercializar ou divulgar elementos do nazismo, como o uso da cruz suástica ou gamada, por exemplo, no ano passado. Em 2019, isso só aconteceu uma vez. Os números, que podem parecer pouco expressivos, na verdade são indicadores de uma escalada de violência que ultrapassa o delimitado na lei: casos extremos de ódio e ataques direcionados. Quando os suspeitos são identificados, não é raro que sejam adolescentes ou jovens adultos. O fenômeno, segundo historiadores da área, tende a atrair os mais jovens e ameaçar instituições de ensino assim como no ápice do nazismo, nos anos 1930.
“O neonazismo não é um acontecimento de massa, é um indicador de perigo. Até anos atrás, Minas Gerais não tinha essa presença de grupos extremistas. Preocupa e é um alerta de que estamos perdendo os valores de tolerância e inclusão”, avisa o historiador da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Sérgio da Mata, que é especialista na história da Alemanha. Um dos casos mais recentes de apologia ao nazismo e à supremacia branca em Minas Gerais ocorreu na capital no mês de maio. Um jovem de 24 anos foi detido em casa com uma coleção de blusas, bandeiras e medalhas com símbolos extremistas.
Ele foi localizado por um conexão com um grupo de Santa Catarina. Outras ocorrências que marcam o enfrentamento ao neonazismo no Estado também mostram um protagonismo jovem e ocorrem em colégios e faculdades. Na Escola Municipal José Silvino Diniz, em Contagem, na região metropolitana, paredes foram pichadas com suásticas e mensagens com referências a Hitler, líder do nazismo alemão. O mesmo ocorreu no banheiro da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), em Divinópolis, que ficou marcado por um "Viva Hitler".
“Esse aumento de ocorrências explícitas do neonazismo está cooptando principalmente os jovens pela violência. É um momento de fragilidade, porque o adolescente está numa fase de crise existencial, está buscando uma identidade, uma referência”, afirma a historiadora social Beatriz Brusantin, que é coordenadora do curso de História da Estácio BH e estudou o movimento de extrema direita no mestrado.
Pichação no banheiro da UEMG. Fonte: Reprodução / Redes Sociais
Na avaliação de Sérgio da Mata, a estratégia de agir pelos mais jovens funciona porque coopta os mais dispostos a radicalizar. “Eles querem provar autenticidade. As posturas contestatórias, aquilo que é politicamente incorreto, aquilo que causa mais alvoroço, vai atrair a atenção desses meninos”, diz. “Acontece, também, uma manipulação dos sentidos. Os neonazistas dizem buscar liberdade, o que parece justo, lembra independência, mas, na verdade, a falta de limites é a lei da selva. Se assim for, quem tiver uma arma, quem for mais forte, vai se impor”, alerta.
Mas a integração dos adolescentes e jovens ao extremismo também tem outro lado. As escolas e instituições de ensino tendem a absorver as discussões e mudanças da sociedade, conforme o especialista em segurança pública Jorge Tassi. Ele argumenta que o fenômeno é típico de um cenário de polarização. “Aconteceu um afunilamento. A sensação da polarização é que existem dois grupos em conflito, e os jovens absorvem isso. Não é normal que o neonazismo se manifeste, mas ele acompanha uma série de situações de discriminação, violência e questões políticas que se tornam mais conservadoras”, analisa.
No Brasil, investigações de neonazismo saltaram 311%
O alerta ultrapassa os limites do Estado. A nível nacional, os inquéritos abertos pela Polícia Federal (PF) para apurar o mesmo crime — descrito no §1º do artigo 20 da lei 7.716/1989 — quadruplicaram em um ano. Em 2023, 37 investigações foram iniciadas no país. Já em 2022, foram 9. Os dados foram divulgados após pedido de acesso à informação pela agência de dados “Fiquem Sabendo”.
Trabalho articulado entre Ministério dos Direitos Humanos e ONU
Neste ano, a PF abriu novos 6 inquéritos só até março, um deles instaurado na Zona da Mata mineira. Em abril, a ameaça do extremismo motivou o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão do Governo Federal, a iniciar um trabalho de comunicação com a Organização das Nações Unidas (ONU). O primeiro relatório sobre o aumento de células neonazistas no Brasil cita três casos em Minas Gerais, todos eles em instituições de ensino. A pichação na UEMG, em 2022, e dois casos de ameaças neonazistas em escolas em Belo Horizonte e em Contagem, na região metropolitana, foram mencionados.
“Você tem um dado histórico. O próprio nazismo operou na lógica da cultura e da educação. Esses sempre foram os espaços de cooptação em relação ao pensamento nazista. Na relatoria do Conselho, temos trabalhado com as secretarias de cultura e educação como elementos chave de enfrentamento”, afirma o relator especial para o enfrentamento de células neonazistas no Brasil, Carlos Nicodemos.
Pichações neonazistas em escola de Contagem, na Grande BH. Fonte: Arquivo Pessoal
Neonazismo cresce em Minas em resposta à tendência mundial
O extremismo de direita é um fenômeno documentado no país desde a década de 1920, por um pensamento intelectual, político e ideológico do “verde-amarelismo”, como era chamado o movimento à época, segundo a historiadora social Beatriz Brusantin. Mas as células neonazistas, que ficavam mais concentradas no Sul do país e no Estado de São Paulo, passaram a se multiplicar ativamente em outras regiões do Brasil nos últimos anos. Foi o que aconteceu com Minas Gerais.
“Existe uma circulação do pensamento de ultra direita que se aqueceu mundialmente. Então, é um movimento internacional que está ecoando, está recebendo público. Quando chega no país, em Minas Gerais, encontra um berço fértil marcado pela incitação ao ódio”, explica a historiadora Brusantin.
De fato, o pesquisador Sérgio da Mata cita um fenômeno mundial que acontece de formas diferentes, mas com símbolos parecidos, em países como Israel, França e Estados Unidos. “O alvo do ódio vai alternar de acordo com a circunstância. Em Israel, são os palestinos. Na Hungria, são os liberais. Nos países da Europa e nos Estados Unidos, os imigrantes, além da imprensa e das minorias. Aqui no Brasil, são alvos aqueles que têm um pensamento democrático, as pessoas LGBTQIAPN+, as pessoas negras, a imprensa, a educação inclusiva, tudo que contrarie o extremismo”, diz.
Ideias neonazistas são “premiadas” com engajamento
As ideias neonazistas crescem em escalada por estarem mais fáceis de acessar, a poucos cliques de distância. Perfis sem identificação publicam uma série de postagens diariamente, com mensagens de ódio direcionado. Segundo o historiador Sérgio da Mata, estas publicações ganham destaque pelo efeito chocante. “As redes, como o Telegram e o X (antigo Twitter), estão com políticas muito facilmente violáveis. Com certeza é uma minoria que posta, mas faz muito mais barulho. As posições extremistas têm sido premiadas com engajamento: geram adesão, likes, compartilhamentos”, avalia.
É o que tem levantado o trabalho da relatoria do Conselho do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania nas missões pelo Brasil. O grupo foi à campo em Santa Catarina e passará, na sequência, pelos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. “A internet é um ambiente de altíssima fertilidade. Ela fomenta os discursos de ódio, misoginia, racismo, e acaba se tornando uma forma de retroalimentação. A performance da postagem retroalimenta aquela ideologia de supremacia racial”, confirma o conselheiro-chefe Carlos Nicodemos.
Se há excesso de propaganda extremista, falta alfabetização digital. “A geração Z (nascidos entre 1997 e 2010) já nasceu completamente na era digital. Ela está sempre conectada, mas não teve tempo de criar uma criticidade sobre o que é compartilhado. É um problema de educação, porque esses jovens recebem as mensagens, dão credibilidade e passam para frente sem senso crítico aprofundado”, analisa Beatriz Brusantin, que também tem formação como pedagoga.
Ainda há muito a se fazer
O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) têm apurado e feito um trabalho de análise do cenário das células neonazistas no Brasil desde junho do ano passado. O relator especial da missão, Carlos Nicodemos, adiantou ao O TEMPO três indicadores que serão oficializados à ONU até o final deste ano:
- falta de política de enfrentamento ao crime;
- conceito de neonazismo desatualizado
- e necessidade de melhoria na responsabilização dos criminosos.
“São questões que devem constar no relatório final da relatoria. Primeiro, não existe uma política nacional de enfrentamento a esse tema no Brasil. As iniciativas são isoladas, dentro de competências específicas dos órgãos, sem qualificações em termos de investigação”, alerta o relator. Conforme Nicodemos, o segundo ponto é que a criminalização do neonazismo é dificultada quando se entende o ato apenas como aversão aos judeus.
“Já existe uma perspectiva contemporânea do crime. A violência dos movimentos neonazistas afeta a democracia e o estado de direito, mas atinge também grupos minoritários, como a comunidade LGBTQIAPN+, grupos religiosos, pessoas não-brancas. É preciso atualizar esse conceito”, continua. O relator adiciona, ainda, a importância de melhorar a punição para o crime. “A lei penal é uma lei muito tímida, não oferece mecanismos essenciais para o enfrentamento do neonazismo”, julga. Os indicadores do CNDH serão encaminhados à ONU e apresentados ao Governo Federal para formação de políticas públicas.
A reportagem demandou o Estado de Minas Gerais e o Governo Federal sobre as políticas de enfrentamento ao neonazismo. A matéria será atualizada com as respostas.
Dados
Procedimentos instaurados na Polícia Civil pelo crime de apologia ao nazismo em MG:
- 2019: 1
- 2020: 2
- 2021: 1
- 2022: 6
- 2023: 10
Fonte: PCMG
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