Como é visitar a Coreia do Norte, que anuncia reabertura ao turismo estrangeiro

Como é visitar a Coreia do Norte, que anuncia reabertura ao turismo estrangeiro
Parte da frota da Air Koryo no aeroporto internacional Sunan, na cidade com o mesmo nome, a 24km de Pyongyang, capital da Coreia do Norte Foto: Renato Alves/Arquivo pessoal

Repórter de O TEMPO relata sua experiência no país mais fechado do mundo, que deve reabrir as portas ao turismo estrangeiro em dezembro, após quase 5 anos

Por Renato Alves O Tempo

A Coreia do Norte reabrirá suas portas ao turismo estrangeiro em dezembro, após quase cinco anos de fechamento, anunciaram nesta semana dois operadores turísticos especializados. Esse longo período sem receber turistas se deve, em parte, à pandemia de covid-19. Há também o fato de se tratar do país mais isolado do mundo, controlado com mão de ferro por uma dinastia desde sua criação.

Uma delas disse ter sido informada de que o turismo para Samjiyon e, “potencialmente, para o restante do país será retomado oficialmente em dezembro de 2024”. Perto da fronteira norte entre a Coreia do Norte e a China, Samjiyon é uma porta de entrada para o Monte Paektu, onde, segundo a história oficial, nasceu o falecido líder norte-coreano Kim Jong-Il, pai do atual líder norte-coreano, Kim Jong-un.

A propaganda oficial também diz que foi nesta montanha onde o fundador da Coreia do Norte, Kim Il Sung — pai de Kim Jong-Il – lutou contra as forças de ocupação japonesas e deu início à revolução que culminaria na criação do país. Historiadores de diversas parte do mundo contestam até os feitos heróicos de Kim Il Sung. Dizem que ele era apenas uma marionete nas mãos dos soviéticos.

Agora, os propagandistas de Kim Jong-un dizem que ele investiu pesado na região, com novos hotéis e uma estação de esqui. A KCNA, agência estatal de notícias da Coreia do Norte, informou em julho que tudo foi concebido para ser uma “área turística montanhosa nas quatro estações, para atender às necessidades culturais e emocionais das pessoas no mais alto nível e revitalizar o turismo internacional”.

Mas, como tudo em se tratando da Coreia do Norte, as informações nunca são precisas nem podem ser checadas. Por exemplo, não há qualquer evidência que Kim Jong-Il nasceu no Monte Paektu, tratado pelo regime como um lugar sagrado.

Poucos são os estrangeiros que já estiveram na nação de Kim Jong-un. Menos ainda são os jornalistas. O autor desta reportagem é uma das exceções. Visitou o país em 2017 para escrever um livro reportagem [O Reino Eremita, editora Quixote], lançado em 2018. Agora ele conta como é possível entrar no país asiático e o que se deve fazer para lá permanecer e sair de forma segura.

Pacotes são vendidos apenas por agências credenciadas

Apesar de toda a tensão envolvendo o regime de Kim Jong-un e o Ocidente, é permitido a turistas de quase todos os países [com exceção da Coreia do Sul] a visita à Coreia do Norte. 

Fora para os jornalistas ocidentais e os cidadãos sul-coreanos em geral, o visto, na verdade, é apenas um trâmite formal, tratado pela agência que organiza o tour onde o turista se incluirá.

Basta ter a documentação pessoal em dia, se inscrever na agência e pagar por um dos pacotes oferecidos. Há opções em grupo ou em um tour individual, sempre com guias locais.

Para ter o visto, só precisa enviar uma foto e cópia de algumas páginas do seu passaporte por e-mail. Segundo as agências que operam no país, o índice de vistos negados é extremamente baixo.

As viagens para Pyongyang, capital da Coreia do Norte, partem de Pequim com voos operados pela Air Koryo, a empresa aérea norte-coreana. Os pagamentos na Coreia do Norte devem ser todos em dinheiro em espécie, de euros, dólares ou yuan chinês.

  • O valor do pacote varia com o número de pessoas que pretendem fazer a mesma viagem, pela mesma empresa, no mesmo período. Em  média, uma viagem individual de uma semana custa 3.000 euros – cerca de R$ 18 mil.
  • O valor inclui transporte interno, motorista, dois guias, tradutores, taxas turísticas, as diárias em um hotel de quatro estrelas, com três refeições por dia.
  • Além disso, é preciso pagar as passagens aéreas da sua origem a Pequim [ida e volta] e os voos [ida e volta] da Air Koryo, de Pequim a Pyongyang. A viagem, de uma hora e 45 minutos, custava 550 euros antes da pandemia.
  • O preço do pacote podia cair até 1.300 euros, dependendo do volume de turistas em um grupo. Por exemplo, a partir de 15 pessoas, é fretado um ônibus, diminuindo o preço do transporte.
  • Até a pandemia, uma das mais conhecidas agências que oferecem esse serviço, a britânica Koryo Group levava, anualmente, até 40 grupos de 20 de turistas cada à Pyongyang, em tours “all inclusive”, com passagem aérea a partir de Pequim, alimentação, hotel, transporte e passeios pela Coreia do Norte. 

Voos são realizados pela ‘pior companhia aérea do mundo’

O meio de transporte mais usual para entrar na Coreia do Norte é o aéreo – há trens ligando à China. E só há uma companhia que leva turistas ocidentais ao país, a Air Koryo. A estatal norte-coreana foi considerada a pior companhia aérea do mundo, por quatro anos seguidos. 

Título concedido pela consultoria internacional Skytrax, que usa quesitos como eficiência, qualidade do serviço de comida e entretenimento a bordo para classificar as empresas de aviação comercial. A Air Koryo ficou em último em todos os quesitos, entre 600 aéreas pesquisadas. 

O que mais pesa contra a estatal norte-coreana é a idade da frota. São 30 anos sem comprar aviões novos. Alguns são da década de 1960, adquiridos em parceria com a extinta União Soviética, que, enquanto teve dinheiro, sustentou a Coreia do Norte, a exemplo do que fazia com Cuba e outros países comunistas.

Como algumas das aeronaves têm mais de 60 anos, elas não dispõem da tecnologia que proporciona segurança dos modelos atuais. Os pilotos voam sem apoio de computadores de bordo e outros equipamentos. É na base do papel e caneta. Com exceção de um Antonov ucraniano — criado para o transporte de cargas, quando o país integrava a URSS —, os demais são os antigos russos Ilyushin e Tupolev.

Outra reclamação é a qualidade do entretenimento a bordo, que oferece apenas material com propagandas do governo. Além disso, comprar uma passagem pelo site da empresa é quase impossível. 

Frota única atrai aficionados por aviação

Muitas das aeronaves da Air Koryo não são mais operadas em serviços comerciais em nenhuma outra empresa aérea, sem contar operadores governamentais e de carga. São modelos como Antonov 24, Ilyushin 18, Ilyushin 62, Ilyushin 76, Mil 8, Tupolev 134, Tupolev 154 e Tupolev 204.

Mas a má reputação da estatal norte-coreana não assusta fãs de aviação do mundo ociental. Ao contrário. Voar em um aparelho da companhia é o sonho de muitos deles. Sabendo disso, o regime de Kim Jong-un autorizou a criação de pacotes de viagem só para essa gente. Há excursões regulares só para esse interesse, com voos pelo país. 

Norte-coreanos e soviéticos fundaram a Air Koryo em 1954, com o nome de Chosonminhang. Por três décadas do período da Guerra Fria, ela voou para as principais capitais comunistas, como Moscou, Berlim e Praga, até a ajuda soviética minguar. 

Sem dinheiro para manutenção e aquisição de novas aeronaves, a Air Koryo foi perdendo voos. Em 2006, a empresa foi proibida de operar na União Europeia, por questões de segurança. Até a China, maior parceira comercial da Coreia do Norte, proibiu a operação dos aviões mais antigos da companhia em seu território. 

O país só não ficou isolado do mundo da aviação porque a empresa havia comprado, em 2008, dois Tupolevs 204-300 usados e encomendado um novo Antonov An-148. A frota atual inclui nove aeronaves. Com ela, a Air Koryo mantém três destinos internacionais: Pequim e Shenyang, na China, e Vladivostok, na Rússia.

Dobrar jornal ou revista é crime

Na ida para Pyongyang, voei um dos dois Tupolevs 204-300 da Air Koryo. Outra boa notícia: a aeronave tinha vídeo para instruções de segurança e entretenimento. Uma má: o único vídeo a ser exibido ao longo de toda a viagem seria um concerto militar em comemoração ao aniversário do Partido Comunista. 

Havia as opções de pegar, na entrada, a revista e o jornal oficial, recheados de fotos de norte-coreanos felizes e do atual líder supremo, Kim Jong-un, também sempre sorridente e cercado por cidadãos com as mesmas feições. O jornal era o Pyongyang Times, em inglês, editado e distribuído só a estrangeiros. 

Mas, antes de pegar qualquer periódico na Coreia do Norte, onde todos são norte-coreanos e editados por fiéis assessores do governo, uma importante dica: nunca dobre, em hipótese nenhuma, qualquer um deles. Muito menos rasgue alguma página. Jamais jogue algum exemplar fora. 

Todas as edições do jornal, como as de todos os periódicos entregues aos norte-coreanos, vêm sempre com uma fotografia de Kim Jong-un como principal imagem da capa. Portanto, qualquer dano a um jornal ou a uma revista dessas é vista como um desrespeito, uma ofensa e até uma agressão aos norte-coreanos. 

Desfeita tratada como crime, punível com severa advertência e multa até prisão, a depender do estrago feito no veículo de comunicação e do humor das autoridades locais. Não resta outra opção a não ser voar com o jornal todo aberto no colo. 

O desembarque é feito no aeroporto internacional Sunan, em uma cidade com o mesmo nome, a 24km de Pyongyang. Inaugurado em julho de 2015, o terminal é seis vezes maior que o antigo e tem lojas e restaurantes, sempre vazios. 

Embora moderno e espaçoso, o aeroporto só tem voos para Pequim, na China, e para a Rússia, operados pela Air Koryo e Air China. Quando deixei a Coreia do Norte, só havia mais duas partidas no dia, além do meu voo para Pequim. Um para Shenyang, na China, e o outro, Vladivostok, na Rússia.

Circulação limitada, imagens vetadas

Um país sob uma ditadura, que ignora convenções mundiais de direitos humanos, mantêm relações diplomáticas com poucas nações, em guerra tecnicamente com a Coreia do Sul há mais de meio século – apesar dos bombardeios terem sido suspensos em 1953 –, com ameaças de atingir países inimigos com ogivas nucleares, não é amigável com os turistas estrangeiros ávidos a captar o maior volume possível de imagens dos cenários e cidadãos norte-coreanos.

É possível entrar na Coreia do Norte pela fronteira com a China, mas é muito difícil circular pelas suas cidades e estradas. Principalmente por suas zonas rurais, onde, segundo organismos internacionais, há miséria, fome e campos de trabalho forçado. Não há liberdade para se locomover fora da hospedagem. 

Agentes do Estado comunista sempre acompanham os visitantes, durante o rígido itinerário, geralmente baseado em visitar a capital, ainda que alguns também incluam viajar à Zona Desmilitarizada, na fronteira com a Coreia do Sul. 

Sequer é dado ao turista que contratou os serviços de uma agência em Pequim a opção de escolher o hotel e o roteiro da viagem. Também não é possível sair do hotel sem o guia ou sem a autorização dele. 

Há risco de ser preso mesmo dentro do hotel, pelas mais simples e inocentes atitudes – do ponto de vista estrangeiro –, como a que levou à detenção do estudante norte-americano Otto Warmbier, em janeiro de 2016. O caso expôs ao mundo os riscos de se visitar a Coreia do Norte. 

Sentenciado a 15 anos de cadeia por trabalhos forçados por ter arrancado um cartaz de propaganda política no corredor do hotel em que estava hospedado, ele passou 17 meses trancado em um presídio norte-coreano. 

“Vamos armar-nos fortemente com o patriotismo de Kim Jong-Il!”, dizia mensagem estampada no pôster. Causar qualquer tipo de dano ou até mesmo roubar materiais com o nome ou a imagem de um líder norte-coreano é considerado um crime grave pelo governo norte-coreano.

O estudante morreu uma semana após ser enviado para casa, em junho de 2017, em coma. Na versão autorizada por Kim Jong-un, logo após a sentença, Warmbier sofreu uma lesão neurológica na prisão, por causa de um suposto acidente. 

Já em território norte-americano, onde desembarcou de uma UTI aérea, em uma maca, imóvel, médicos do Centro Médico da Universidade de Cincinnati afirmaram que ele estava “em um estado de vigília sem resposta”, comumente conhecido como estado vegetativo persistente. 

Otto Warmbier era capaz de respirar por conta própria e piscar os olhos, mas, por outro lado, não mostrava sinais de consciência de seu ambiente. De acordo com sua equipe médica, exames do cérebro revelaram que Warmbier sofreu uma extensa perda de tecido cerebral em todo a região, consistente com um evento cardiopulmonar que causou a privação de oxigênio na cabeça. 

Houve uma suspeita de que ele sofreu lobotomia. Depois que seus pais pediram a remoção do tubo de alimentação, ele morreu no hospital às 14h20 de 19 de junho de 2017, aos 22 anos. A causa da morte jamais foi conhecida, pois os pais do estudante não permitiram a autópsia no corpo — foi feito apenas um exame externo post-mortem.

‘Excursões baratas para lugares que sua mãe não gostaria que você visitasse’

Aluno da Universidade da Virgínia, Otto Warmbier era curioso sobre o mundo e queria conhecer todo ele, disse seu pai em uma entrevista em abril de 2017. Por isso, no fim de 2015, Warmbier se tornou integrante da New Year’s Party Tour (Excursão da Festa de Ano Novo), da Young Pioneer Tours, uma agência de viagens que tinha como slogan “excursões baratas para lugares que sua mãe não gostaria que você visitasse”. 

De Pequim, o ponto de encontro, o grupo — com outros 10 cidadãos norte-americanos — embarcaria em um voo para Pyongyang, onde ficaria apenas cinco dias. O estudante foi preso na última noite da excursão, após beber no bar do hotel com companheiros de viagem. Ele teria acessado um andar restrito a funcionários e agentes do Estado, onde se deparou com o pôster que pretendia levar como souvenir.

O pai de Warmbier, Fred, acusou as empresas que promovem o turismo na Coreia do Norte de “alimentar” o regime ditatorial. Afinal, destacou ele, as excursões são uma das formas encontradas por Kim Jong-un para driblar as sanções e permitir a entrada de moedas estrangeiras no país. 

Após a morte do estudante, os EUA decidiram proibir viagens de seus cidadãos ao país de Kim Jong-un. A medida ainda está em vigor. Já a Young Pioneer Tours afirmou que não incluiria mais cidadãos dos EUA nas excursões organizadas por ela. A agência disse que lhe foi negada qualquer oportunidade para se encontrar com Warmbier, após ele ter sido detido, e que a forma como as autoridades trataram o seu caso “foi chocante”. 

As duas outras principais agências de viagens que organizavam esse tipo de excursões, a Koryo Tours, no Reino Unido, e a Uri Tours, sediada em Nova Jersey (EUA), disseram, em julho de 2017, que estavam “revisando” a venda de pacotes de viagens à Coreia do Norte para clientes norte-americanos. Todas as empresas tiveram turistas detidos na Coreia do Norte, mas em nenhum caso com consequências tão graves quanto as enfrentadas por Warmbier.

Na mesma época, outros norte-americanos continuavam presos na Coreia do Norte, mas nenhum havia ido ao país como turista. Trabalhavam lá, sendo dois em uma universidade privada coreano-americana e um em um hotel localizado em uma zona econômica especial no norte do país – área reservada a empresas nacionais e estrangeiras.