Mais de uma semana após bloqueio, indústria do entretenimento sente a falta dos brasileiros no X
Estudiosos apontam que força das comunidades de fãs brasileiras já é sentida no mercado da cultura pop
O Tempo Por Alex Bessas
Já faz mais de uma semana que o X, antigo Twitter, saiu do ar no Brasil, deixando, nos seus usuários mais cativos, um sentimento de saudade, que, aliás, está longe de ser unilateral: em todo o mundo, não faltam exemplos de manifestações de pesar, queixas e relatos sobre a falta que os brasileiros têm feito à rede social.
O número exato de contas temporariamente inativadas, aliás, é ainda uma incógnita. Algumas empresas de pesquisa de mercado indicavam que o país tinha pouco mais de 40 milhões de usuários mensais, outras estimavam que o número seria menor, cerca de 20 milhões. Mas, mesmo considerando o cálculo mais modesto, o volume já seria suficiente para colocar o Brasil na sexta posição no ranking global de maiores mercados da plataforma, onde é especialmente relevante em alguns segmentos.
Para o universo do entretenimento, sobretudo para a cultura pop e seu engajado ecossistema de comunidades de fãs, por exemplo, a sensação é de que uma lacuna se abriu. “É como a queima da Biblioteca de Alexandria para os fandoms”, comparou um tuiteiro gringo, que – talvez pelo tom hiperbólico da comparação, tão comum no linguajar usado nesse tipo de mídia – foi notado pela jornalista norte-americana Taylor Lorenz, especializada na cobertura da cultura na internet.
Em uma newsletter publicada um dia após o bloqueio da rede social no Brasil, em que cita o tuíte, ela foi enfática: “O desligamento (do Twitter) já está enviando ondas de choque pelo universo do entretenimento e da cultura pop. Com mais de 21 milhões de usuários mensais, o Brasil é um dos mercados dominantes do X, não apenas medido pelo uso, mas também pelo impacto cultural”, apontou, acrescentando que gravadoras, produtoras e agências de relações-públicas do universo do entretenimento ainda avaliavam, naquele momento, o impacto que o banimento nesse mercado.
“Os usuários da internet brasileira sempre foram uma força vocal online. O país deu origem ao meme ‘Come to Brazil’ na primeira metade dos anos 2010, onde fãs de música pop enchiam as respostas de postagens de celebridades internacionais com a frase, implorando para que viessem ao país”, descreve a autora, lembrando que os fãs brasileiros já ressuscitaram, sozinhos, programas de TV, filmes, músicas e celebridades, levando-os ao mainstream, além de potencializarem lançamentos, ajudando artistas a chegar ao topo das paradas de sucesso.
Além da capacidade de fazer produtos se tornarem tendência do dia para a noite, Taylor aponta que os fandoms brasileiros também desempenham um papel crucial no ecossistema de mídia de celebridades, atuando como arquivistas voluntários da cultura pop. “Essas contas documentam cada foto, atualização de notícias e projeto relacionado ao objeto de sua adoração. Elas trazem à tona histórias e informações sobre celebridades e o mundo do entretenimento que, de outra forma, provavelmente passariam despercebidas”, escreve.
A relevância brasileira no mercado do entretenimento
Para a professora e pesquisadora Geane Carvalho Alzamora, do departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), de fato, as comunidades de fãs no Brasil têm suas especificidades. “Somos um país muito ligado ao audiovisual. No século passado, por exemplo, tínhamos uma cultura muito modelada pelas telenovelas. E desde aquela época já tínhamos fãs organizados, que eram os fandoms antes mesmo que esse conceito, tal qual conhecemos hoje, existisse”, situa. “E isso é importante porque vai caracterizar não só a nossa atitude no entretenimento como também na política”, menciona.
Ela ainda aponta que, embora muito vocal no X, esse ecossistema não está restrito a apenas uma rede sociais, estando presente também em outras plataformas. “Estou orientando uma tese de doutorado sobre a importância que a Netflix, uma empresa transnacional, dá ao fandom brasileiro”, comenta, defendendo que, em função dessas características, é provável que o mercado brasileiro faça mais falta ao X e à indústria do entretenimento do que o X faz falta para os brasileiros.
“Essa é a modalidade do business na contemporaneidade e, por isso, insisto que não se pode tratar as plataformas como mero negócio de tecnologia: esse é o formato privilegiado da mídia na contemporaneidade, a transmídia, cuja estrutura não é mais monomidiática, afetando a cultura de forma contundente”, indica, defendendo a necessidade de regulamentação do setor. “A cultura constituída nessas plataformas não corresponde meramente ao negócio tecnológico, mas ao aspecto preferencial da interação sociotécnica na contemporaneidade, com implicações variadas na nossa vida cotidiana. Então, isso não pode ser tratado como interesse pessoal de um empresário que está atuando transnacionalmente, mas, sim, à luz dos interesses de cada nação na qual a plataforma está sediada”, argumenta.
E é justamente pela força que o mercado brasileiro nas redes que a estudiosa tem um palpite: “Creio que Elon Musk vai perder essa queda de braço porque o X, no Brasil, é um negócio muito rentável, de forma que é provável que, dentro de algumas semanas, a situação se resolva”, aponta. Até lá, ela torce que o bilionário compreenda que o país “não é a casa da Mãe Joana”. “Nenhum empresário pode chegar aqui e agir como se não existissem leis”, critica, voltando a falar sobre a urgência de se estabelecer marcos regulatórios que estabeleçam regras mais rígidas ao funcionamento dessas plataformas – “porque elas correspondem a interesses públicos, e não apenas de um cidadão que nem brasileiro é”.
Prejuízos e reacomodação
Por sua vez, Camilo Aggio, também professor e pesquisador do departamento de comunicação social da UFMG, não acredita que o bloqueio do X no Brasil represente um baque tão grande para a cultura pop mundial a ponto de ser comparado à destruição da Biblioteca de Alexandria. “Não houve queima de nada, não houve a destruição de bens de valor artístico e culturais. O que aconteceu, na verdade, é que o acesso ao Twitter foi desligado, em razão de uma decisão da Suprema Corte, por conta de um desrespeito às leis por parte de um empresário ególatra”, avalia o integrante do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), inteirando que, obviamente, a suspensão da rede social no país implicou, sim, prejuízos para a dinâmica de funcionamento de certos grupos, entre eles os grupos de fãs – ou fandoms.
“O Twitter se constituiu como uma rede muito particular. Em primeiro lugar, com uma demografia muito específica, reunindo vetores da política, do jornalismo, pesquisadores e autoridades públicas, assim como atores da cultura pop”, reflete o Aggio, apontando razões que podem explicar o porquê da plataforma, embora apenas a nona em número de usuários no país, tinha grande relevância no debate público.
“Este espaço, por uma série de fatores, também se tornou um lugar onde muitos fãs se reúnem para criar um conjunto de expedientes, de formas e dinâmicas do consumo da cultura pop”, menciona, lembrando que a ferramenta era usada de maneira complementar pelos espectadores de séries, novelas e reality shows, por exemplo, com os usuários fazendo comentários, às vezes em tempo real, sobre o que estavam assistindo. Além disso, ele lembra que a plataforma abrigava também produtos paralelos criados pelos fandoms, como as fanfics, narrativas ficcionais criadas a partir de histórias de seus ídolos.
“Naturalmente, neste primeiro momento, o ecossistema do entretimento e da cultura pop vai sofrer com um impacto da falta da audiência brasileira no modo como seus produtos serão apreciados e também na forma como eles serão promovidos”, avalia, situando que a capacidade de adaptação dessa indústria às adversidades é notável. “Acho que a sobrevivência, nessa seara, é mais a regra que a exceção”, diz. “Por isso, acredito que o bloqueio do Twitter não será suficiente para fazer que essas comunidades sejam extintas”, assinala, pontuando duas possibilidades mais imediatas: o restabelecimento do X no Brasil, com a reativação desse ecossistema pré-existente, ou uma reacomodação desses atores em outra plataforma.
Casa nova
Ativa no X desde 2009, quando a rede social ainda atendia por Twitter, era representada por um passarinho azul e tinha uma linha do tempo cronológica, Aline Paiva, 28, conta que dedicava parte do seu tempo livre ao fandom “Once”, formado por fãs do grupo feminino sul-coreano Twice. “Eu acompanho, ou melhor, acompanhava as notícias sobre K-Pop quase exclusivamente pela plataforma desde 2013”, recorda.
Além da atividade no Once, Aline argumenta que o Twitter era, para ela, um espaço de convivência. “Não era somente um lugar para se atualizar sobre as notícias de minhas cantoras favoritas, mas também uma forma de interagir com outras pessoas com interesses parecidos com os meus. Fiz muitas amizades por lá, então é como se eu me sentisse um pouco ‘perdida’ (sem acesso à rede social) depois de tantos anos”, reconhece.
Particularmente em relação ao K-Pop, Aline acompanhava muitas contas relacionadas a tradução de conteúdos, charts e campanhas de divulgação de fãs brasileiros. “Inclusive me surpreendi muito quando anunciaram a suspensão da rede durante o final de semana e várias contas que eu acompanhava se ‘revelaram’ como brasileiras e informaram que estavam migrando, majoritariamente, para o Bluesky (que disputa, com o Threads, a preferência dos ‘órfãos’ do X)”, situa, acrescentando ter certeza que o afastamento dos fãs brasileiros de uma comunidade de grande alcance como o Twitter terá um impacto gigantesco na repercussão de lançamentos de músicas, videoclipes, filmes, etc.
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