A história do juiz brasileiro que usou nome falso por 45 anos dizendo ser lorde inglês

Com documentos falsos e se comportando como britânico, o magistrado conseguiu enganar colegas de faculdade, do TJ-SP e de outras instituições
O Tempo Por Renato Alves
BRASÍLIA – Por mais de 40 anos, José Eduardo Franco dos Reis, um cidadão de Águas da Prata (SP), pequena cidade a 238 km da capital paulista, localizada na encosta do planalto do vulcão de Poços de Caldas (MG), filho de José dos Reis e Vitalina Franco dos Reis, viveu como se fosse descendente de nobres ingleses.
O homem nascido em 1958 numa cidade do interior do Brasil com pouco mais de 7 mil habitantes conseguiu enganar muita gente, inclusive autoridades. Dizendo ser Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, um lorde inglês, virou juiz, assinou sentenças, expediu ordens e se aposentou com um alto salário.
Com documentos falsos, José Eduardo assumiu o cargo de juiz no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 1995, como se fosse Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield. Ele se aposentou em março de 2018. E a farsa só foi tornada pública agora, após conclusão de investigação da Polícia Civil.
Conforme o Ministério Público de SP, que denunciou o juiz aposentado por uso de documentos falsos e falsidade ideológica, essa história começou em 19 de setembro de 1980, quando José Eduardo, então com 22 anos, foi a um posto de identificação da Polícia Civil e fez o documento em nome de Edward Wickfield.
Ele disse ser filho de Richard Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield e Anne Marie Dubois Vicente Wickfield. Também apresentou um certificado falso de reservista do Exército, um documento que dizia ser ele servidor do Ministério Público do Trabalho, uma carteira de trabalho e um título de eleitor, todos com o mesmo nome falso.
Tudo foi possível, em grande parte, pelo fato de que naquela época as instituições não eram informatizadas. Não havia como cruzar os dados dos documentos apresentados por José Eduardo. Por outro lado, ainda não se sabe porquê ninguém questionou o cidadão sobre seu inusitado nome, desconfiou.
O certo é que, já como Edward Albert Lancelot Dodd Canterbury Caterham Wickfield, José Eduardo ingressou e se formou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Depois prestou concurso público e, em 1995, se tornou juiz do TJ-SP. Atuou como magistrado por 23 anos, até se aposentar.
Chá das cinco, tweet e português com sotaque britânico
Para sustentar a farsa, José Eduardo se comportava como se fosse de fato um membro da realeza do Reino Unido. Para isso, bebia chá pontualmente às 17 horas e costumava ser visto com blazers de tweed. Falava português com um pouco de sotaque britânico.
Conforme reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, magistrados e servidores do TJ-SP que conviveram com José Eduardo dizem que, a todos que questionavam a origem do nome, ele dizia ser filho de britânicos e neto de um magistrado inglês, um nobre.
Após a farsa vir à tona, juízes trocaram mensagens em grupos de Whatsapp para falar de José Eduardo. Segundo os relatos, ele dizia que usava o metrô para se deslocar ao Fórum João Mendes porque estava acostumado com o transporte público na Inglaterra. Também disse fazer tratamento fonoaudiológico para diminuir o sotaque britânico.
“Quando o príncipe da Inglaterra se casou, ele tirou férias na mesma época. A gente achava que ele tinha ido para o casamento mas ele falava que não podia contar nada”, escreveu um ex-colega em um desses grupos de magistrados, de acordo com o Estadão.
Após ser flagrado no Poupatempo, juiz alegou ter irmão gêmeo
No entanto, Edward Wickfield manteve as documentações para as suas duas personalidades ativas ao longo de quatro décadas. Em 1993, ele obteve uma nova via do RG para o nome José. Naquele ano, disse que José trabalhava como vendedor na Rua Senador Feijó, na Sé, centro histórico da cidade de São Paulo.
José Eduardo ainda renovou a verdadeira carteira de identidade em 28 de junho de 2022, dizendo morar em uma rua do bairro da Vila Mariana, Zona Sul paulistana. Mas foi em uma outra tentativa de obter nova carteira de identidade, em outubro de 2024, que sua farsa começou a ser desvendada pela Polícia Civil.
Ele foi a uma unidade do Poupatempo, centro de serviços do governo de São Paulo, pedindo uma segunda via do RG, dessa vez, para o nome Edward. Mencionou a Vila Mariana e apresentou uma certidão de nascimento falsa, de 1958. Mas os sistemas do instituto de identificação emitiram um alerta para as digitais de Edward e de José.
Foram encontrados dois registros diferentes associados às mesmas digitais. A divergência só foi percebida porque os registros do Instituto de Identificação haviam sido digitalizados. Quando o juiz voltou ao Poupatempo para buscar a segunda via do RG, descobriu que, antes disso, precisaria procurar a polícia.
O caso foi encaminhado para a Delegacia de Polícia de Combate a Crimes de Fraude Documental e Biometria. Os policiais descobriram que, além dos dois RGs e CPFs, o homem também usava duas inscrições eleitorais e dois cadastros na Receita Federal.
Em 2 de dezembro, em depoimento, o então investigado se apresentou na delegacia como o artesão José Eduardo Franco dos Reis, nascido em Águas da Prata, no interior de São Paulo. Ao ser perguntado sobre quem é então o homem com nome inglês respondeu ser um irmão gêmeo dele dado à adoção ainda criança para britânicos.
Ainda segundo José Eduardo, ele e o suposto irmão teriam retomado o contato na década de 1980, quando Edward teria vindo para o país. No depoimento, o homem contou que Edward trabalhou no Brasil até se aposentar e depois retornou para a Inglaterra, residindo atualmente em Londres.
José Eduardo apresentou ao delegado do caso um suposto endereço do irmão no bairro de West Kensington e um número de telefone. Também justificou a ida até o Poupatempo para renovar o RG de Edward, dizendo que estava atendendo a um pedido do suposto irmão gêmeo.
Autoridades inglesas negaram haver cidadão com tal nome
Investigadores buscaram informações em cartórios, nas instituições e até na Inglaterra. Autoridades britânicas negaram a existência de qualquer cidadão inglês com o nome de Edward Wickfield. Nenhum documento ou passaporte com essa identidade consta nos bancos de dados do Reino Unido.
O inquérito concluiu que Edward é um devaneio de José Eduardo, que hoje tem 67 anos. Mas a fantasia que ele criou porque realmente sonhava com o mundo da realeza britânica é crime.
Na denúncia à Justiça, o promotor Maurício Salvadori pediu que os documentos em nome de Edward sejam bloqueados, assim como a carteira de habilitação e o licenciamento de um carro que foi registrado no nome britânico. O promotor quer a entrega do passaporte e a proibição de ele se ausentar da cidade onde mora.
A denúncia foi recebida pela 29.ª Vara Criminal da Capital e a ação penal foi aberta. Com isso, José Eduardo se tornou réu. Ele precisa ser comunicado da decisão para apresentar sua defesa, que ainda não aconteceu porque oficiais de Justiça não conseguiram localizá-lo.
Já o TJ-SP alegou, em um primeiro momento, que, por se tratar de um magistrado aposentado, não havia providências administrativas a serem tomadas. Mas, em uma nova análise, o Tribunal de Justiça decidiu abrir uma apuração disciplinar. O procedimento tramita em sigilo.
Uma das primeiras medidas do TJ-SP foi suspender os pagamentos ao juiz. Desde que se aposentou, ele recebeu R$ 4,8 milhões. O valor corresponde à remuneração bruta. Com os descontos, os subsídios líquidos alcançaram R$ 3,4 milhões. Os últimos contracheques estão acima dos R$ 100 mil, mesmo sem exercer a jurisdição.
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