‘Catfish’ acende alerta em Minas Gerais, e especialistas apontam cenário preocupante

‘Catfish’ acende alerta em Minas Gerais, e especialistas apontam cenário preocupante
Apesar de algumas histórias parecerem totalmente ilógicas, a capacidade das pessoas de se envolverem e convencerem as vítimas chama a atenção Foto: Editoria de Arte/O TEMPO
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Pessoas com perfis falsos podem ter traços sombrios, como a psicopatia, segundo profissional

O Tempo    Por Juliana Siqueira

 

Jennifer Aniston tem um novo amor. Após declarar, no ano passado, que era mais feliz sendo solteira, ela finalmente parece ter encontrado a sua alma gêmea: o aposentado e ex-mecânico Luiz Antônio*, de 62 anos, morador de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Os dois conversam todos os dias pela Internet, e Jennifer já sonha com o casamento. Se você está desconfiado de que a famosa atriz hollywoodiana namora um brasileiro que conheceu aleatoriamente nas redes sociais,você está certo. A prática descrita é conhecida como ‘catfish’ e consiste em se passar por outra pessoa para enganar os internautas, é cada vez mais comum, conforme a chefe da divisão especializada em combate a crimes cibernéticos da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), Cristiana Angelini, e foi retratada recentemente na série da Netflix “Meu Querido Bobby”. No Brasil, a ação, por si só, não é crime e, portanto, não há dados específicos sobre isso. Porém, pode estar alinhada a algum delito, como falsidade ideológica e estelionato.

Apesar de algumas histórias parecerem totalmente ilógicas, a capacidade das pessoas de se envolverem e convencerem as vítimas chama a atenção. Muitas vezes, elas têm o objetivo de pedir dinheiro. Em outras, só querem mesmo ‘brincar’ com os sentimentos alheios ou se vingar por algum motivo. Guilherme* é filho de Luiz Antônio e já não sabe o que fazer: o pai se recusa a pedir uma prova de identidade para ‘Jennifer Aniston’, pois ela poderia ficar ofendida. Comunicar a polícia nem pensar. A ‘atriz’ nunca pediu nada ao homem, apenas conversa e se mostra apaixonada. No entanto, a família toda se preocupa, e o psicólogo Thales Coutinho afirma que um ‘término de relacionamento’ como esse, quando a vítima percebe que foi enganada, pode ser muito mais doloroso do que o fim de namoro com uma pessoa real. As consequências podem ser devastadoras, emocionalmente e financeiramente.

“Meu pai não é bonito, é pobre, não é sofisticado, não fala inglês, como pode acreditar nisso? Os dois conversam em português! Ele realmente acha que namora a Jennifer Aniston e fica com raiva se falamos o contrário. A ‘sorte’ é que ele é tão pobre que não teria nem R$ 300 para dar para essa pessoa, então não vai perder dinheiro. Já até pensei que poderia ser a minha mãe ‘se vingando’ dele, já que estão separados há anos”, diz Guilherme.

Se um dia Luiz Antônio descobrir que ‘Jennifer Aniston’ é um fake qualquer, as consequências podem ser avassaladoras, segundo o psicólogo Thales Coutinho.  “Pode ser muito pior do que a dissolução de um caso romântico real. Quando uma pessoa termina um relacionamento de verdade, pelo menos ela tem um resquício do amor que o parceiro dava, entende que aquilo, pelo menos por um período, foi real. Agora, no caso do Catfish, é um baque que pode ser bem mais grave”, diz ele.

Além disso, conforme Coutinho, não são só as vítimas que podem precisar de assistência psicológica. Os próprios ‘fakes’ também podem ter diversos problemas de ordem emocional — e alguns bem preocupantes.

“Manipular o afeto de outra pessoa em benefício próprio pode ser um comportamento de pessoas sádicas. A pessoa também pode ter traços de personalidade sombrios, como psicopatia e narcisismo”, diz ele.

Conforme Coutinho, em geral, essas pessoas têm uma frieza emocional muito grande. No entanto, há também casos daqueles que inventam um personagem na Internet por conta de um vazio emocional muito grande. “A pessoa cria uma história alternativa para ter certa relevância social”, destaca o profissional.

 

Casos em alta

Coutinho afirma que esse tipo de comportamento, porém, não é algo recente. Antes mesmo da Internet, já existiam pessoas que manipulavam as outras para que elas acreditassem que eram amadas enquanto eram apenas usadas. No entanto, as novas tecnologias facilitaram esse comportamento. A chefe da divisão especializada em combate a crimes cibernéticos da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), Cristiana Angelini, concorda.

“Em Minas Gerais, temos visto um aumento significativo dos casos, e isso também está relacionado ao crescimento das redes sociais e dos aplicativos de relacionamento. Não há uma estatística específica, já que isso aparece vinculado a outros crimes digitais. As ações da Polícia Civil são no sentido de investir no treinamento dos investigadores e delegados, fazer campanhas de conscientização. As pessoas que cometem crimes na Internet também são encontradas. Não fica impune”, diz ela.

Conforme Cristiana, os internautas também podem tomar alguns cuidados para não serem pegos pelo ‘Catfish’. “Primeiramente, é importante desconfiar de perfis com informações básicas ou perfeitas demais. Além disso, deve-se pesquisar sobre a pessoa, verificar as redes sociais, desconfiar se não quiser fazer chamada de vídeo. Também é importante não compartilhar informações financeiras e pessoais com quem você não conhece”, diz ela.

 

Mais de 330 pessoas são enganadas diariamente na Internet em Minas Gerais

Apesar de o catfish, por si só, não ser considerado crime no Brasil, a mentira na Internet pode vir acompanhada de delitos passíveis de prisão. O meio digital tem sido cada vez mais palco de ações criminosas em Minas Gerais: somente de janeiro a setembro deste ano, foram registrados 81.846 casos de crimes cibernéticos. São 14 casos de estelionato, falsidade ideológica, difamação, invasão de dispositivo informático, entre outros por hora no Estado — a média é de um registro a cada 4 minutos ou ainda 335 por dia. O número, mesmo que subnotificado – uma vez que nem todas as vítimas denunciam – aponta para um desafio à parte para as autoridades policiais.

Advogado especialista em direito digital, Alexandre Atheniense afirma que, quando se trata de catfish, deve-se fazer uma análise da causa e da consequência do ato. Se uma pessoa finge ser uma atriz famosa, por exemplo, para pedir dinheiro, ela pode estar cometendo pelo menos dois crimes: estelionato, já que obtém vantagem de forma ilícita, e falsidade ideológica. Já que utiliza um fake para agredir alguém, pode se enquadrar em crime contra a honra. Por outro lado, criar um perfil falso com um pseudônimo somente para olhar publicações, inicialmente, não seria crime, mas pode ser contra as políticas das plataformas.

“É a consequência dessa abordagem que vai definir o tipo de ilícito (delito). Já tive vários casos iguais a esses, de pessoas que foram ludibriadas por terceiros. O mais comum é a pessoa começar esse falso envolvimento, se apresentar como alguém de um país distante, um admirador. Mais para a frente, entra o assunto dinheiro”, conta ele.

Há também o caso de pessoas que inventam um personagem qualquer para atrair atenção de outras. Elas não pedem dinheiro ou aplicam golpes, mas podem inventar que estão doentes ou contar histórias fantasiosas sobre a vida delas, conquistando a solidariedade e a atenção dos outros. Nesse caso, dependendo da situação, pode ser que elas tenham que pagar danos morais às vítimas, que perderam horas do dia para aconselhar e dar atenção a quem ‘não existia’.

“Para poder considerar um dano, a vítima teria que comprovar algum fato que o demonstre. Um exemplo é se, a partir disso, ela teve que procurar um psicólogo por ficar muito abalada”, diz ele.

Advogado especialista em crimes digitais, Luiz Felipe Siqueira também ressalta que o caso pode ir para o judiciário na esfera cível, caso fique comprovado o abalo da vítima e o nexo de causalidade.

“Se a pessoa comprovar a dor que teve ao ser enganada, ela pode pleitear danos morais e conseguir indenização. Vai depender muito das provas, e se o juiz vai aceitar ou não. Também pode ser que seja considerado mero aborrecimento”, afirma.

Conforme o advogado, a maior parte dos perfis falsos, porém, é de estelionatários. “A primeira medida é as pessoas serem sempre desconfiadas e pesquisar sobre tudo antes de tomar qualquer atitude. Nunca sair clicando em qualquer coisa. Há muitas chances de haver fraudes”, ressalta.

Atheniense lembra que os dados dos internautas são protegidos, mas por meio de ordem judicial é possível entrar com ação para descobrir quem está por trás das práticas criminosas.

“O juiz concede a liminar, e o provedor fornece os dados cadastrais. Se há a narrativa e provas bem elaboradas, consegue-se isso”, relata.

No entanto, conforme o advogado, é importante que a vítima aja o mais rapidamente possível. “Quanto mais rápido e acertado a vítima agir, com auxílio de um advogado especialista em direito digital, melhor. O enfrentamento tardio e desordenado diminui as chances de identificar o autor”, diz ele.

 

Feridas ficam

A pedagoga Ana*, de 32 anos, conta que por mais de dez anos, ela teve uma amiga virtual. A mulher nunca deu dinheiro a ela, mas se envolveu em tudo: deu conselhos sobre todos os assuntos, sofreu junto com a amiga os términos de namoro, enfermidades, entre outras fases da vida. Depois, ela descobriu que nada era real. A amiga tinha inventado toda uma vida na Internet, uma espécie de personagem para viver online.

“Eu descobri por acaso. Ela tinha uma rede social completa, com fotos de vários momentos, muitos comentários, parecia tudo real. No entanto, um dia descobri o perfil real da pessoa de quem ela pegava as fotos. Ela acabou admitindo que inventou toda uma vida porque se sentia infeliz com a dela. Foi horrível, ela enganou muitas pessoas, brincou com os sentimentos de todo mundo”, diz.

Ana* afirma que parou de falar com a mulher desde então. “É uma pena, pois ela era realmente muito legal, mas a confiança acabou ali. Não conseguiria seguir sendo amiga dela. No fim, não descobri nem quem estava por trás daquele perfil, nome, idade, nada, porque ela não falou”, relata.

 

Previna-se 

Veja dicas para não cair no catfish

Desconfie. Não acredite em todo mundo com quem você conversa na Internet. Pesquise sobre a pessoa, verifique as redes sociais e suspeite se ela não aceitar fazer chamada de vídeo.

Análise das histórias. A pessoa parece perfeita demais? As histórias que ela conta são fantasiosas? É tudo muito mágico? Tome cuidado! Há chances de não ser real.

Preserve seus dados. Não compartilhe dados pessoais. Evite falar onde você mora, trabalha e dar detalhes sobre a sua família e rendimentos. 

Fique atento a pedidos. Se a pessoa contar histórias tristes, solicitar dinheiro, disser que precisa de algum depósito urgente, desconfie.

Não clique em nada. Não abra arquivos de pessoas que você não conhece nem links que pareçam suspeitos.

Analise declarações de amor. Desconfie se a pessoa diz que te ama muito rapidamente, tem gestos exagerados de ‘amor’ e se declara constantemente.

Prefira os anônimos. Pessoas famosas provavelmente não vão conversar aleatoriamente e intimamente com quem elas não conhecem. Não acredite que você está conversando com o Brad Pitt, por exemplo.

Peça ajuda de amigos e familiares. Como eles não estão envolvidos diretamente com a pessoa, podem ter uma perspectiva melhor de quem ela é. 

Fonte: Polícia Civil de Minas Gerais, Alexandre Atheniense, Luiz Felipe Siqueira